sábado, 4 de maio de 2024

 

Esta e outras publicadas neste blogue, encontram-se já em livro, com o título " As (des)Aventuras de um professor em África"


A “CHITA”



          - Esta história que vamos contar…

          - Vais, porque só a ouvi, tal como tu… bom... na parte primeira da história, também foste protagonista.

          Carlos tinha sido interrompido por António. Retomou a conversa…

          - Tens razão… a primeira parte desta história passou-se, também, comigo…

          - Não é preciso ficares com essa cara. Já lá vão quase… quê?... muitos... quantos anos?

          - Mais ou menos, coisa e tal. Não interessa agora – Responde Carlos e continua – Penso que é assim, no seu todo... Mas... lembro-me do que aconteceu quando fiz parte da primeira investida do grupo e… sinceramente podia dar em grave tragédia, pese embora o mau que aconteceu ao… fico sempre, digamos que “arrepiado” ...

          - Mas conta, os leitores vão interessar-se por esta história… mais uma entre muitas…

          - Está bem, menino António. Cá vai. Tínhamos combinado ir à caça da Chita, eu, o Borges, o Franklin, o Celso, o Carvalho, o meu colega de escola, queria ir, mas quase sempre rumava a Sá da Bandeira... o Celso entrava pela primeira vez no grupo, era da Ganda, tinha aquela casa de tintas e materiais de construção, era muito amigo do Borges, o dono da oficina de reparações automóvel, e, também do Franklin…

          - Claro que me lembro dele. Um “acelerado”, sempre a mandar bocas, bom homem… ao seu jeito, mas estoira vergas, não era?

          - Era, António. Difícil de lhe estabelecer regras, como as que tínhamos na caça. Fomos para as bandas de Capira, tinham-nos dito que muitas Chitas por lá havia… lembrei-me do “grande lago”, aquela enorme porção de água que era “abastecida” por alguns riachos e uma forte nascente de água, a que dava origem ao rio Cubal. Seguia até à Catumbela, onde entrava no rio com o nome do local, Catumbela. Vê a nascente... tenho aqui a fotografia aérea do local...

                    

          Ora o nosso “pacaça”, o Land Rover cor cinzenta, como quase todos os jipes da “praça”, estava todo reparadinho, lustroso e a trabalhar que era um “mimo”. Seguimos em direção ao destino. Uma hora da manhã de um sábado. Mantimentos, as duas 375, a Parker e a Winchester e a S&W, velhinha (smith & wesson) com munições 300 Magnum. Estas munições não eram do tipo perfurante, sim destinadas a impacto, rombas, mais por causa dos elefantes, pacaças… enfim… nunca matámos nenhuma “peça com trombas” ou alguma “chifruda” com mais de 100Kg, que “necessitasse” da S&W. Mas era muito “digna” a presença dela no nosso grupo.

          O ar era fresco. A cerca de 30 quilómetros avistamos uma manada de galengues. Cerca de 10. Maravilhosos ruminantes. Mas, não era isto que nos interessava, sim o felino mais rápido a “funcionar” em Angola, e outras paragens, a chita. A minha velha “zeiss icon” tirou mais uns slidezitos à manada e lá continuámos para sul.

          - A Chita chega a atingir os 100 quilómetros por hora, não é?

          - Chega, dizem os entendidos na matéria que já provaram isso com os radares próprios para isso, bom, mas a vegetação que se via era a típica da zona. Eram árvores de médio porte nesta área, entre os dois e os cinco metros, com muita e muita terra entre elas mostrando o vermelho típico de uma terra “ferrosa” ... normal... muita espinheira, embondeiros espalhados pelo terreno, capim baixo a bordejar a estrada, picada boa, diga-se de passagem, sem regueiras provocadas pelas chuvas que levam os veículos a trepidarem de uma forma desesperante, e aquele pozinho teimando em levantar à frente do “pacaça”. Estava vento. Tudo a tossir de leve... e a beber água. Esta ia com fartura...

          Muitos e muitos quilómetros percorridos e começámos a dar conta que nos íamos aproximando da zona da “nascente” do rio Cubal, no grande lago, (por mim designado, entenda-se) porque a vegetação era agora mais densa e mais verde e o ar mais fresco. Enveredámos, saindo da picada principal, por uma bem mais complicada, em direção ao “lago”. Vimos no ar muitas aves o que nos “dizia” estarmos perto. O sol começava a aquecer o ambiente. Parámos perto do rio. Cada um tratou das suas tarefas... experimentar armas, sem tiro é claro, ver os mantimentos, e esticar as pernas.

          O Borges relembrou o que lhe tinha sido informado, falando para todos, e, conhecedor da área bem como o Franklin, com todos prontos, colocaram os dois, Borges e Franklin, as armas ao ombro, (confesso que nunca tinha visto esta forma de tratar as armas, vindo logo deles) agarradas pelo cano e seguiram, à frente, rumo à “nascente” do rio. O Celso pegou rapidamente na Parker, a “derradeira” e eu, olha, segui de “mãos nos bolsos a assobiar uma valsa”. Este Celso é um abusador, ia pensando atrás dele. Quem lhe disse que podia levar a arma?... Sentia-me completamente inútil... A arma não era a minha... a minha era uma caçadeira de 77 de cano, canos paralelos, uma Liege... Claro que não servia para nada nestas circunstâncias, nem com zagalote nos cartuchos, mas... enfim, ao menos se a tivesse trazido sempre “aconchegava” o ego.  

          Andámos dois ou três quilómetros mesmo assim, o suficiente para estarmos cansados por causa da viagem e do ato e pedras a ter que passar. Sentámo-nos numas, junto a uma fileira de árvores que circundavam umas “paredes” formadas por maciços de pedra... pareciam cortadas para fazer o tal muro. Estas pedras, eram curiosamente modeladas, pelo que parecia, por “agua” e agentes atmosféricos. Tinham imensas cavidades tipo bolsas, denotando pressão constante de água durante milhares de anos e na parte superior eram largas, com, aí uns dois metros, mas com fendas pelas vertentes, partidas, digamos, talvez por excessos de temperatura e arrefecimentos rápidos. Era uma fila seguida, com cerca de quarenta metros de comprimento, por uns 3 de altura. Muitas das árvores, atrás e algumas na frente, pousavam os ramos sobre elas. Um bom esconderijo para aves e animais de pequeno porte...

          Levantámo-nos e, claro, predispus-me a seguir a brigada que chefiava o grupo... Ao menos podia ter trazido um bloco para ir “apontando alguma coisa”. Pensava. Bom, tinha a maquineta com um rolo, só com 6 fotos tiradas.  Era de 24 slides e ainda tinha outro intacto... os dois eram Agfa porque privilegiavam os tons azuis e verdes, eram melhores em paisagem que os Kodak. Estes davam mais ênfase aos tons quentes, vermelhos, amarelos...

          Para lá da metade, quase no final do “maciço” de pedras, Borges e o Franklin ficam de cócoras rapidamente.  Baixei-me também. O Celso ficou em pé a olhar para o local onde estavam os dois, mais à frente, e a tentar ver sobre as pedras o que poderia ser. Leva a arma acima e espreita pelo óculo. Lá na frente, gestos para nos baixarmos, mais para o Celso, porque eu já estava e não tinha condições para fazer o que quer que fosse. O Celso baixa-se, mas volta a levantar-se. O Borges mandava-o baixar com uns gestos que se veriam a 200 metros. Afasto-me um pouco para a direita da barreira de pedra que estava à nossa esquerda, por forma a poder ver o que se passava.

          Vejo três chitas. Uma é um filhote. Só oiço um tiro, um rosnado enorme de raiva de uma chita. Era o macho e um restolhar sobre as pedras com os ramos a abanarem progressivamente na nossa direção. Dois tiros são ouvidos e os animais desaparecem.

          Borges e Franklin tinham atirado para o topo das pedras para afastar o macho que “voava” na direção do Celso... e da minha.

          Foi o fim do mundo. O Borges e o Franklin desancam o Celso de tudo quanto era nome chamando-o, agora em português mais “legível”, de irresponsável que não fazia a mínima ideia do que era caçar, que podia ter posto em perigo a sua pessoa e a minha e que se não tivessem disparado para afugentar o animal tinha-se dado uma tragédia. Foi ele que atirou à revelia... sabia as regras e não as cumpriu. Só a ganância da peça....

          O Celso não conseguia engolir aquela “desanca”, e ia respondendo. Entretanto fomos dar uma volta pelo local e soubemos que quem tinha sido baleado pelo dizer do Celso era a cria... de raspão, pelo menos a julgar pelo pouco sangue que se via no chão.... Continuámos a seguir o rastro e trezentos metros mais à frente, sob uma pedra, o casal... a cria esta deitada.... Tínhamos ali o resultado da precipitação. Celso avança para ir buscar o animal. Borges e Franklin correm atrás dele, deitam-lhe a mão à casaca de caça e viram-no para eles. Borges diz-lhe com a cara quase em cima da dele e de punho pronto...

          - Já fizeste uma linda coisa, agora querias morrer. Ficas aqui já! Voltas para trás connosco. Entretanto Franklin com a arma pronta a disparar estava expectante. Mantinha o casal de chita sobre mira.... Só se viam, agora, parte das orelhas do macho e parte do focinho. A cria à vista, mas os progenitores atentos ao nosso grupo.... Olhavam para nós. O macho rosnou novamente de uma forma furiosa que nos fez voltar para trás a “passo de corrida”.

          Já no jipe e a caminho de casa, com uma viagem inútil como base de humor, e uma tensão algo desconfortável, Franklin lembrou a Celso.

          - Celso, sabias que não devias disparar sem que estivéssemos prontos e em situação resguardada. A chita não é nenhuma cabra de leque, não é um galengue, um gnu... é perigosíssima quando ferida. Quando isso acontece vai atacar nos próximos minutos com toda a certeza. Esconde-se e ataca sem se dar conta dela. Mataste a cria e viste que ela ia atacar se não fosse a pronta atuação, minha e do Borges,  atacava-te e eventualmente ao António. Nunca mais faças isto!

          Franklin diz-lhe:

          - Vais desculpar, mas mais uma destas e o teu pedido de ingressar o nosso grupo fica sem efeito! Que ganância!

          Seguiu-se um silêncio de quilómetros... Para desanuviar o ambiente, Borges e Franklim começam a traçar novos projetos. Seria para os lados da saída do Cubal para Benguela, antes do entroncamento com a estrada que vem do sul. O soba da sanzala... agora não me lembro do nome... ficava para o lado da captação de água... Bom, o soba tinha pedido um galengue ou cabras, para uma festa de casamento que ia acontecer daí a quinze dias. O relacionamento entre o Franklin, mais que o Borges, com os sobas da região, era excelente. Franklin, dono de uma fazenda de sisal cuidava dos seus trabalhadores como poucos. O Matos já não era tanto assim, embora nada faltasse aos trabalhadores, sabíamos isso tudo, pelos próprios trabalhadores.

          - Deixa-me perguntar Tó, o Matos fazia parte do grupo, mas ia poucas vezes convosco?

          - Ia... tinha afazeres que o Franklin não tinha. O pai do Franklin era quem dirigia a fazenda, e por isso estava muito mais “solto”. Tanto que dava física na D. João II. Era meu colega. Mas, com esta peripécia, passaram-se cerca de 8 dias, até que, um dia, estávamos no café, eu, tu, o Valentim, o Sousa e aparece o Borges com cara de quem está maldisposto. O Valentim, bem ao seu jeito, dispara:

          - Ó Borges, estávamos aqui a pensar em te debitar esta despesa, mas como vens aí, podes pagar diretamente ao balcão, embora estejas com cara de quem não está para aí virado.

          - Pago sim senhor. Mas a minha cara tem a ver... - Sentou-se e pediu uma Cuca. Virou-se para nós e diz.... Pois é, avisei ou não avisei o Celso para não tornar a fazer asneiras? - Olhámos um para o outro, estás lembrado? Pois foi outra vez ao local, agora com dois fulanos seus vizinhos na Ganda.

          Desencostámo-nos automaticamente dos bancos... Borges continuou...

          No sitio onde atirou sobre a cria, e no meio dos dois companheiros a chita, presume-se que o macho, só podia ter sido, saltou-lhe em cima, rasgou-lhe parte da cara e do ombro... O animal falhou porque, por milagre, o Celso tinha-se virado no momento para perguntar qualquer coisas aos outros. Bom, vieram a “voar” para a Ganda, o jipe gripou à entrada do hospital, seguiram para Nova Lisboa e já foi para Luanda... Tem necessidade de uma cirurgia muito complicada e disseram-me que o olho fica comprometido. Não morreu por milagre, tanto sangue perdeu...

          Tinha dito àquele palerma que não podia brincar com este tipo de animal. A ver se não foi direitinho a ele?!!!... há “gajos” que não ouvem ninguém!

- Agora, estás calado! Claro António, não é para menos... - Digo para Carlos.

    - Vês que afinal, os anos passam, mas o peso do que acontece não desaparece assim.

     - É melhor não pensarmos mais nisto e despedirmo-nos com um até breve.

 

 

 

Victor Martins

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