Esta e outras publicadas neste blogue, encontram-se já em livro, com o título " As (des)Aventuras de um professor em África"
A “CHITA”
- Esta história que vamos contar…
- Vais, porque só a ouvi, tal como tu… bom... na parte
primeira da história, também foste protagonista.
Carlos tinha sido interrompido por António. Retomou a
conversa…
- Tens razão… a primeira parte desta história passou-se,
também, comigo…
- Não é preciso ficares com essa cara. Já lá vão quase…
quê?... muitos... quantos anos?
- Mais ou menos, coisa e tal. Não interessa agora –
Responde Carlos e continua – Penso que é assim, no seu todo... Mas... lembro-me
do que aconteceu quando fiz parte da primeira investida do grupo e…
sinceramente podia dar em grave tragédia, pese embora o mau que aconteceu ao…
fico sempre, digamos que “arrepiado” ...
- Mas conta, os leitores vão interessar-se por esta
história… mais uma entre muitas…
- Está bem, menino António. Cá vai. Tínhamos combinado ir à
caça da Chita, eu, o Borges, o Franklin, o Celso, o Carvalho, o meu colega de
escola, queria ir, mas quase sempre rumava a Sá da Bandeira... o Celso entrava
pela primeira vez no grupo, era da Ganda, tinha aquela casa de tintas e
materiais de construção, era muito amigo do Borges, o dono da oficina de
reparações automóvel, e, também do Franklin…
- Claro que me lembro dele. Um “acelerado”, sempre a mandar
bocas, bom homem… ao seu jeito, mas estoira vergas, não era?
- Era, António. Difícil de lhe estabelecer regras, como as
que tínhamos na caça. Fomos para as bandas de Capira, tinham-nos dito que
muitas Chitas por lá havia… lembrei-me do “grande lago”, aquela enorme porção
de água que era “abastecida” por alguns riachos e uma forte nascente de água, a
que dava origem ao rio Cubal. Seguia até à Catumbela, onde entrava no rio com o
nome do local, Catumbela. Vê a nascente... tenho aqui a fotografia aérea do
local...
Ora o nosso “pacaça”, o Land Rover cor cinzenta, como quase
todos os jipes da “praça”, estava todo reparadinho, lustroso e a trabalhar que
era um “mimo”. Seguimos em direção ao destino. Uma hora da manhã de um sábado.
Mantimentos, as duas 375, a Parker e a Winchester e a S&W, velhinha (smith
& wesson) com munições 300 Magnum. Estas munições não eram do tipo
perfurante, sim destinadas a impacto, rombas, mais por causa dos elefantes,
pacaças… enfim… nunca matámos nenhuma “peça com trombas” ou alguma “chifruda”
com mais de 100Kg, que “necessitasse” da S&W. Mas era muito “digna” a
presença dela no nosso grupo.
O ar era fresco. A cerca de 30 quilómetros avistamos uma
manada de galengues. Cerca de 10. Maravilhosos ruminantes. Mas, não era isto
que nos interessava, sim o felino mais rápido a “funcionar” em Angola, e outras
paragens, a chita. A minha velha “zeiss icon” tirou mais uns slidezitos à
manada e lá continuámos para sul.
- A Chita chega a atingir os 100 quilómetros por hora, não
é?
- Chega, dizem os entendidos na matéria que já provaram
isso com os radares próprios para isso, bom, mas a vegetação que se via era a
típica da zona. Eram árvores de médio porte nesta área, entre os dois e os
cinco metros, com muita e muita terra entre elas mostrando o vermelho típico de
uma terra “ferrosa” ... normal... muita espinheira, embondeiros espalhados pelo
terreno, capim baixo a bordejar a estrada, picada boa, diga-se de passagem, sem
regueiras provocadas pelas chuvas que levam os veículos a trepidarem de uma forma
desesperante, e aquele pozinho teimando em levantar à frente do “pacaça”.
Estava vento. Tudo a tossir de leve... e a beber água. Esta ia com fartura...
Muitos e muitos quilómetros percorridos e começámos a dar conta
que nos íamos aproximando da zona da “nascente” do rio Cubal, no grande lago,
(por mim designado, entenda-se) porque a vegetação era agora mais densa e mais
verde e o ar mais fresco. Enveredámos, saindo da picada principal, por uma bem
mais complicada, em direção ao “lago”. Vimos no ar muitas aves o que nos
“dizia” estarmos perto. O sol começava a aquecer o ambiente. Parámos perto do
rio. Cada um tratou das suas tarefas... experimentar armas, sem tiro é claro,
ver os mantimentos, e esticar as pernas.
O Borges relembrou o que lhe tinha sido informado, falando
para todos, e, conhecedor da área bem como o Franklin, com todos prontos,
colocaram os dois, Borges e Franklin, as armas ao ombro, (confesso que nunca
tinha visto esta forma de tratar as armas, vindo logo deles) agarradas pelo
cano e seguiram, à frente, rumo à “nascente” do rio. O Celso pegou rapidamente
na Parker, a “derradeira” e eu, olha, segui de “mãos nos bolsos a assobiar uma
valsa”. Este Celso é um abusador, ia pensando atrás dele. Quem lhe disse que
podia levar a arma?... Sentia-me completamente inútil... A arma não era a
minha... a minha era uma caçadeira de 77 de cano, canos paralelos, uma Liege...
Claro que não servia para nada nestas circunstâncias, nem com zagalote nos
cartuchos, mas... enfim, ao menos se a tivesse trazido sempre “aconchegava” o
ego.
Andámos dois ou três quilómetros mesmo assim, o suficiente
para estarmos cansados por causa da viagem e do ato e pedras a ter que passar.
Sentámo-nos numas, junto a uma fileira de árvores que circundavam umas
“paredes” formadas por maciços de pedra... pareciam cortadas para fazer o tal
muro. Estas pedras, eram curiosamente modeladas, pelo que parecia, por “agua” e
agentes atmosféricos. Tinham imensas cavidades tipo bolsas, denotando pressão
constante de água durante milhares de anos e na parte superior eram largas, com,
aí uns dois metros, mas com fendas pelas vertentes, partidas, digamos, talvez
por excessos de temperatura e arrefecimentos rápidos. Era uma fila seguida, com
cerca de quarenta metros de comprimento, por uns 3 de altura. Muitas das
árvores, atrás e algumas na frente, pousavam os ramos sobre elas. Um bom
esconderijo para aves e animais de pequeno porte...
Levantámo-nos e, claro, predispus-me a seguir a brigada que
chefiava o grupo... Ao menos podia ter trazido um bloco para ir “apontando
alguma coisa”. Pensava. Bom, tinha a maquineta com um rolo, só com 6 fotos
tiradas. Era de 24 slides e ainda tinha
outro intacto... os dois eram Agfa porque privilegiavam os tons azuis e verdes,
eram melhores em paisagem que os Kodak. Estes davam mais ênfase aos tons
quentes, vermelhos, amarelos...
Para lá da metade, quase no final do “maciço” de pedras,
Borges e o Franklin ficam de cócoras rapidamente. Baixei-me também. O Celso ficou em pé a olhar
para o local onde estavam os dois, mais à frente, e a tentar ver sobre as
pedras o que poderia ser. Leva a arma acima e espreita pelo óculo. Lá na
frente, gestos para nos baixarmos, mais para o Celso, porque eu já estava e não
tinha condições para fazer o que quer que fosse. O Celso baixa-se, mas volta a
levantar-se. O Borges mandava-o baixar com uns gestos que se veriam a 200
metros. Afasto-me um pouco para a direita da barreira de pedra que estava à
nossa esquerda, por forma a poder ver o que se passava.
Vejo três chitas. Uma é um filhote. Só oiço um tiro, um
rosnado enorme de raiva de uma chita. Era o macho e um restolhar sobre as
pedras com os ramos a abanarem progressivamente na nossa direção. Dois tiros
são ouvidos e os animais desaparecem.
Borges e Franklin tinham atirado para o topo das pedras
para afastar o macho que “voava” na direção do Celso... e da minha.
Foi o fim do mundo. O Borges e o Franklin desancam o Celso
de tudo quanto era nome chamando-o, agora em português mais “legível”, de
irresponsável que não fazia a mínima ideia do que era caçar, que podia ter
posto em perigo a sua pessoa e a minha e que se não tivessem disparado para
afugentar o animal tinha-se dado uma tragédia. Foi ele que atirou à revelia...
sabia as regras e não as cumpriu. Só a ganância da peça....
O Celso não conseguia engolir aquela “desanca”, e ia
respondendo. Entretanto fomos dar uma volta pelo local e soubemos que quem
tinha sido baleado pelo dizer do Celso era a cria... de raspão, pelo menos a
julgar pelo pouco sangue que se via no chão.... Continuámos a seguir o rastro e
trezentos metros mais à frente, sob uma pedra, o casal... a cria esta deitada....
Tínhamos ali o resultado da precipitação. Celso avança para ir buscar o animal.
Borges e Franklin correm atrás dele, deitam-lhe a mão à casaca de caça e
viram-no para eles. Borges diz-lhe com a cara quase em cima da dele e de punho
pronto...
- Já fizeste uma linda coisa, agora querias morrer. Ficas
aqui já! Voltas para trás connosco. Entretanto Franklin com a arma pronta a
disparar estava expectante. Mantinha o casal de chita sobre mira.... Só se
viam, agora, parte das orelhas do macho e parte do focinho. A cria à vista, mas
os progenitores atentos ao nosso grupo.... Olhavam para nós. O macho rosnou
novamente de uma forma furiosa que nos fez voltar para trás a “passo de
corrida”.
Já no jipe e a caminho de casa, com uma
viagem inútil como base de humor, e uma tensão algo desconfortável, Franklin
lembrou a Celso.
- Celso, sabias que não devias disparar sem que
estivéssemos prontos e em situação resguardada. A chita não é nenhuma cabra de
leque, não é um galengue, um gnu... é perigosíssima quando ferida. Quando isso
acontece vai atacar nos próximos minutos com toda a certeza. Esconde-se e ataca
sem se dar conta dela. Mataste a cria e viste que ela ia atacar se não fosse a
pronta atuação, minha e do Borges,
atacava-te e eventualmente ao António. Nunca mais faças isto!
Franklin diz-lhe:
- Vais desculpar, mas mais uma destas e o teu pedido de
ingressar o nosso grupo fica sem efeito! Que ganância!
Seguiu-se um silêncio de quilómetros... Para desanuviar o
ambiente, Borges e Franklim começam a traçar novos projetos. Seria para os
lados da saída do Cubal para Benguela, antes do entroncamento com a estrada que
vem do sul. O soba da sanzala... agora não me lembro do nome... ficava para o
lado da captação de água... Bom, o soba tinha pedido um galengue ou cabras,
para uma festa de casamento que ia acontecer daí a quinze dias. O
relacionamento entre o Franklin, mais que o Borges, com os sobas da região, era
excelente. Franklin, dono de uma fazenda de sisal cuidava dos seus
trabalhadores como poucos. O Matos já não era tanto assim, embora nada faltasse
aos trabalhadores, sabíamos isso tudo, pelos próprios trabalhadores.
- Deixa-me perguntar Tó, o Matos fazia parte do grupo, mas
ia poucas vezes convosco?
- Ia... tinha afazeres que o Franklin não tinha. O pai do
Franklin era quem dirigia a fazenda, e por isso estava muito mais “solto”.
Tanto que dava física na D. João II. Era meu colega. Mas, com esta peripécia,
passaram-se cerca de 8 dias, até que, um dia, estávamos no café, eu, tu, o
Valentim, o Sousa e aparece o Borges com cara de quem está maldisposto. O
Valentim, bem ao seu jeito, dispara:
- Ó Borges, estávamos aqui a pensar em te debitar esta
despesa, mas como vens aí, podes pagar diretamente ao balcão, embora estejas
com cara de quem não está para aí virado.
- Pago sim senhor. Mas a minha cara tem a ver... -
Sentou-se e pediu uma Cuca. Virou-se para nós e diz.... Pois é, avisei ou não
avisei o Celso para não tornar a fazer asneiras? - Olhámos um para o outro,
estás lembrado? Pois foi outra vez ao local, agora com dois fulanos seus
vizinhos na Ganda.
Desencostámo-nos automaticamente dos bancos... Borges
continuou...
No sitio onde atirou sobre a cria, e no meio dos dois
companheiros a chita, presume-se que o macho, só podia ter sido, saltou-lhe em
cima, rasgou-lhe parte da cara e do ombro... O animal falhou porque, por
milagre, o Celso tinha-se virado no momento para perguntar qualquer coisas aos
outros. Bom, vieram a “voar” para a Ganda, o jipe gripou à entrada do hospital,
seguiram para Nova Lisboa e já foi para Luanda... Tem necessidade de uma
cirurgia muito complicada e disseram-me que o olho fica comprometido. Não
morreu por milagre, tanto sangue perdeu...
Tinha dito àquele palerma que não podia brincar com este
tipo de animal. A ver se não foi direitinho a ele?!!!... há “gajos” que não
ouvem ninguém!
- Agora, estás calado! Claro António, não é para menos... -
Digo para Carlos.
-
Vês que afinal, os anos passam, mas o peso do que acontece não desaparece
assim.
- É melhor não
pensarmos mais nisto e despedirmo-nos com um até breve.
Victor
Martins
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