A “CHITA”
- Esta história que aconteceu, como todas as que fazem parte deste livro mas, algo a torna muito diferente das outras pelo seu final… a lembrança arrepia.
- Começou assim: Combinámos ir à caça da Chita, eu, o Borges, o Franklin, o Celso e o Carvalho, o meu colega de escola. Queria ir sempre, mas definitivamente rumava a Sá da Bandeira. Celso entrava pela primeira vez no grupo, morava na Ganda, tinha uma casa de tintas e materiais de construção, era muito amigo do Borges, o dono da oficina de reparações automóvel e do Franklin. Notámos que era um “ pouco acelerado”, sempre a mandar bocas, penso que bom homem, ao seu jeito, mas algo precipitado, difícil de lhe estabelecer regras, como as que tínhamos na caça.
Dirigimo-nos para as bandas de Capira, tinham-nos dito que muitas Chitas por lá andavam. Lembrei-me do “grande lago”, aquela enorme porção de água que era “abastecida” por alguns riachos e uma forte nascente de água, a que dava origem ao rio Cubal. Seguia. Segundo se via no mapa, até à Catumbela, onde entrava no rio com o nome do local, Catumbela. Esta é a foto da sua nascente.
Ora o nosso “pacaça”, o Land Rover cor cinzenta, como quase todos os jipes da “praça”, estava todo reparadinho, lustroso e a trabalhar que era um “relógio”. Seguimos em direção ao destino. Uma hora da manhã de um sábado. Mantimentos, as duas 375, a Parker e a Winchester e a S&W, velhinha (smith & wesson) com munições 300 Magnum. Estas munições não eram do tipo perfurante, sim destinadas a impacto, rombas, mais por causa dos elefantes, pacaças, enfim. Nunca matámos nenhuma “peça com trombas” ou alguma “chifruda” a sério com mais de 100Kg que “necessitasse” da S&W. Mas era muito “digna” a presença dela no nosso grupo. Dava-nos um ar de valentes e equipadíssimos caçadores.
O ar era fresco. A cerca de 30 quilómetros avistamos uma manada de galengues. Cerca de 10. Maravilhosos ruminantes. Mas, não era isto que nos interessava, sim o felino mais rápido a “funcionar” em Angola e outras paragens, a chita. A minha velha “zeiss icon” tirou mais uns slidezitos à manada e lá continuámos para sul.
A Chita chega a atingir os 100 quilómetros por hora dizem os entendidos na matéria que já provaram isso com radares próprios. A vegetação que se via era típica da zona. Árvores de médio porte nesta área, entre os dois e os cinco metros, com muita e muita terra entre elas onde era mostrado o vermelho típico de uma terra de características “ferrosas”. Muita espinheira e alguns embondeiros, estes espalhados pelo terreno, capim baixo a bordejar a picada que se podia rotular de boa, diga-se de passagem, sem regueiras provocadas pelas chuvas que levam os veículos a trepidarem de uma forma desesperante, e aquele pozinho teimando em levantar de quando em vez à frente do “pacaça”. Estava vento. Tudo a tossir de leve e claro, a beber água. Tínhamos uma boa provisão.
Muitos e muitos quilómetros percorridos e começámos a notar que nos íamos aproximando da zona da “nascente” do rio Cubal, no grande lago, (por mim designado, entenda-se) porque a vegetação era agora mais densa e mais verde e o ar mais fresco. Enveredámos, saindo da picada principal, por uma outra bem mais complicada, em direção ao “lago”. No ar muitas aves o que nos “dizia” estarmos perto da água. O sol começava a aquecer o ambiente. Parámos então perto do rio. Cada um tratou das suas tarefas, experimentar armas, sem tiro é claro, ver os mantimentos, e esticar as pernas.
O Borges relembrou o que lhe tinha sido informado, falando para todos, e, conhecedor da área bem como o Franklin, com todos prontos, colocaram-se os dois, Borges e Franklin, as armas ao ombro, (confesso que nunca tinha visto esta forma de tratar as armas, vindo logo deles) agarradas pelo cano, e seguiram na nossa frente, rumo à “nascente” do rio. O Celso pegou rapidamente na Parker, a “derradeira” e eu, ora bem, segui de “mãos nos bolsos a assobiar uma valsa”. Este Celso é um abusador, ia pensando atrás dele. Quem lhe disse que podia levar a arma? Sentia-me completamente inútil. A arma não era a minha, essa era uma caçadeira de 77 de cano, canos paralelos, uma Liege. Claro que não servia para nada nestas circunstâncias, nem com zagalote nos cartuchos, mas enfim, ao menos se a tivesse trazido sempre me “aconchegava” o ego. A Parker seria para mim, pensava eu.
Andámos mais ou menos quatro quilómetros, o suficiente para estarmos cansados por causa da viagem e do piso, tanta pedra a ter que passar. Sentámo-nos numas lajes, pedras mais largas que não as roladas na picada, junto a umas fileiras de árvores que circundavam umas “paredes” formadas por maciços de pedra. Pareciam cortadas para fazer um muro extenso. Estas pedras eram curiosamente modeladas, pelo que dava a entender, pelos agentes atmosféricos e pela “água” que por ali já tivesse andado. Tinham essas pedras imensas cavidades tipo bolsas, denotando pressão constante de água durante milhares de anos e na parte superior eram largas, com, aí uns dois metros mas com fendas pelas vertentes, partidas, digamos, talvez por excessos de temperatura e arrefecimentos rápidos. Era uma fila contínua, com cerca de quarenta metros de comprimento por uns 3 de altura. Muitas das árvores, atrás e algumas na frente, pousavam os ramos sobre a plataforma. Um bom esconderijo para aves e animais de pequeno porte.
Levantámo-nos e, claro, predispus-me a seguir a brigada que chefiava o grupo. Ao menos podia ter trazido um bloco para ir “apontando alguma coisa”. Pensava. Bom, tinha a maquineta com um rolo, só com 6 fotos tiradas. Era de 24 slides e ainda tinha outro intacto. Para lá da metade, quase no final do “maciço” de pedras, Borges e Franklin ficam de cócoras rapidamente. Baixei-me também. O Celso ficou em pé a olhar para o local onde estavam os dois mais à frente e a tentar ver sobre o maciço, o que poderia ser. Leva a arma acima e espreita pelo óculo. Lá na frente, gestos para nos baixarmos, mais para o Celso, porque eu já estava e não tinha condições para fazer o que quer que fosse. O Celso baixa-se mas volta a levantar-se. O Borges mandava-o baixar com uns gestos que se veriam a 200 metros. Afasto-me um pouco para a direita da barreira de pedra que estava à nossa esquerda, por forma a poder vislumbrar o que se passava.
Vejo três chitas. Lindas. Uma é um filhote. Só oiço um tiro, um rosnado enorme de raiva de um dos animais. Era o macho e um restolhar sobre as pedras com os ramos a abanarem progressivamente na nossa direção. Dois tiros são ouvidos e os animais desaparecem.
Borges e Franklin tinham atirado para o topo das pedras para afastar o macho que “voava” na direção do Celso e da minha.
Foi o fim do mundo. O Borges e o Franklin desancam o Celso de tudo quanto era nome chamando-o, agora em português mais “legível”, de irresponsável que não fazia a mínima ideia do que era caçar, que podia ter posto em perigo a sua pessoa e a minha e que se não tivessem disparado para afugentar o animal tinha-se dado uma tragédia. Foi ele que atirou à revelia. Sabia as regras e não as cumpriu. Só a ganância de conseguir uma peça.
O Celso não conseguia engolir aquela “desanca”, e ia respondendo. Entretanto fomos dar uma volta pelo local e reparámos que quem tinha sido baleado pelo Celso foi a cria mas de raspão, pelo menos a julgar pelo pouco sangue que se via no chão. Continuámos a seguir o rastro e trezentos metros mais à frente, sob uma pedra, o casal com a cria deitada. Tínhamos ali o resultado da precipitação. Celso avança para ir buscar o animal. Borges e Franklin correm atrás dele, deitam-lhe a mão à casaca de caça e viram-no para eles. Borges diz-lhe com a cara quase em cima da dele e de punho pronto:
- Já fizeste uma linda merda, agora queres morrer. Ficas aqui já! Voltas para trás connosco. Entretanto Franklin com a arma pronta a disparar estava expectante. Mantinha o casal de chita sobre mira. De repente só se viam parte das orelhas do macho e parte do focinho da fêmea. A cria à vista, mas os progenitores atentos ao nosso grupo. Olhavam para nós com toda a certeza. O macho rosnou novamente de uma forma furiosa que nos fez voltar para trás a “passo de corrida”.
Já no jipe e a caminho de casa, com uma viagem inútil como base de humor, e uma tensão desconfortável, Franklin lembrou a Celso:
- Celso, sabias que não devias disparar sem que estivéssemos prontos e em situação resguardada. A chita não é nenhuma cabra de leque, não é um galengue, um gnu, é um felino perigosíssimo quando ferido. Quando isso acontece vai atacar nos próximos minutos com toda a certeza. Esconde-se e ataca sem se dar conta dele. Mataste a cria e viste que ela ia atacar se não fosse a nossa pronta atuação, atacava-te e eventualmente ao Victor. Nunca mais faças isto!
Franklin diz-lhe:
- Vais desculpar, mas mais uma destas e o teu pedido de ingressar o nosso grupo fica sem efeito! Que ganância a tua! As nossas regras não são essas!
Seguiu-se um silêncio de quilómetros. Para desanuviar o ambiente, Borges e Franklim começam a traçar novos projetos. Seria para os lados da saída do Cubal para Benguela, antes do entroncamento com a estrada que vem do sul. O soba da sanzala, tinha pedido um galengue ou cabras, para uma festa de casamento que ia acontecer daí a quinze dias. O relacionamento entre o Franklin, mais que o Borges, com os sobas da região, era excelente. Franklin, dono de uma fazenda de sisal cuidava dos seus trabalhadores como poucos. O Matos já não era tanto assim, embora nada faltasse aos trabalhadores, sabíamos isso tudo pelos próprios trabalhadores.
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- Borges, estávamos aqui a pensar em te debitar esta despesa, mas como vens aí, podes pagar diretamente ao balcão, embora estejas com cara de quem não está para aí virado.
- Pago sim senhor. Mas a minha cara tem a ver... - Sentou-se e pediu uma Cuca. Virou-se para nós e diz: Pois é, avisei ou não avisei o Celso para não tornar a fazer asneiras? - Pois foi outra vez ao local, agora com dois fulanos seus vizinhos na Ganda.
Desencostámo-nos automaticamente dos bancos. Borges continuou...
No sitio onde atirou sobre a cria, e no meio dos dois companheiros a chita, presume-se que o macho, só podia ter sido, saltou-lhe em cima, rasgou-lhe parte da cara e do ombro. O animal falhou porque, por milagre, o Celso tinha-se virado no momento para perguntar qualquer coisas aos outros. Bom, vieram a “voar” para a Ganda, o jipe gripou à entrada do hospital, seguiram para Nova Lisboa e já foi para Luanda. Tem necessidade de uma cirurgia muito complicada e disseram-me que o olho fica comprometido. Não morreu por milagre, tanto sangue perdeu.
Tinha dito àquele idiota que não podia brincar com este tipo de animal. A ver se não foi direitinho a ele?!!! Francamente, existem “gajos” que não ouvem ninguém!
Viriato Mondeguino