quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

A VOLTA


    Hoje decidi, apesar do adiantado da hora, andar pela cidade. São 21 horas e 30 minutos… Fiquei assim, sem ter a certeza do que queria. Depois de um dia extraordinariamente medíocre não me consegui ver ao espelho, que é como quem diz, ter a distinta lata de me introspectar e verificar até que ponto chego. Parece que tudo me assalta nestes dias maus... O assalto desta vez vem com a interrogação sobre o que faço, ou que fiz… Cá para mim, cumprir escrupulosamente a rotina é ser bom funcionário, mas… não é verdade. Vir para casa com a consciência do dever cumprido só porque cumpri o trabalho rotineiro… não é de bom trabalhador. Apesar de não ter uma chefia à altura, esse é um dos grandes males da nossa sociedade, é claramente, possuir uma má chefia, a estagnação de muitos serviços ou até a degradação lenta dos mesmos, ou de outros, mas dizia, tenho a obrigação de virar o processo. Tenho a obrigação porque me considero competente, na teoria e na prática demonstrada em ocasiões, não a tempo inteiro… assim não teria o privilégio de dizer, nesses dias de maior aperto, que estou estafado e que o que ganho não é de modo nenhum a correspondência do que produzo… Apetecia-me agora dar uma gargalhada pelo que disse, não fora o grilo falante que me atormenta o ouvido, e, gargalhava mesmo…

    O tempo, nesta noite é frio e chove, mas a intervalos. De vez em quando nota-se que as nuvens vão e deixam clareiras, mas o vento volta a trazer outras e lá cai mais uma quanta água.

Não levo chapéu… levo chapéu… de momento ao sair, junto do minúsculo quadrado de jardim que me cabe por ter aquele andar, olho para o céu. Está limpo… Umas nuvens mais afastadas não vão de certeza vir tão depressa, até porque o vento abrandou. Entre o ir à mala do carro e sair sem chapéu de chuva, optei por ir sem chapéu, até porque assim sempre aumentaria o meu divagar, ao ter que me abrigar debaixo de qualquer árvore, beirado, varanda, ou simples entrada de um centro comercial… quem sabe se não um café… mas penso que não, não estou para ir para um café pois não me apetece estar com muita gente, o silêncio da noite no meio de tantos é o melhor tratamento para a depressão… ou consciência pesada… ou consciência disso!...

    Não me coube nenhuma mágoa no dia de hoje, no anterior ou nos antecedentes. Simplesmente dei comigo a refletir sobre o meu desempenho, o que faço para melhorar o rendimento no meu posto de trabalho, o aumento de produção que pode ter a minha firma derivado do meu empenho… A consciência de ser um elo útil na cadeia produtiva e consequentemente o meu país a ganhar com isso. Hei! Ainda bem que estou a pensar! Calcule meu caro Pedro, que o senhor estava a falar alto no seu serviço, ou na rua? Na rua eram capazes de nem ouvir, ou se ouvisse alguém, de pensar que sou maluquinho e falo sozinho… isto porque toda a gente dá conta e distingue se um cidadão fala com os seus botões ou se está a falar a um telemóvel. No serviço, tínhamos caso. Ou seja, eram bem capazes de me olhar de soslaio e pensarem que estaria numa de agradar às chefias, ou a querer lixar os colegas porque, apresentar mais serviço que os outros é muito mau para todos.

    Estou simplesmente num fim de dia e de semana que nem sei porque estou assim. Nem sequer houve nenhum acontecimento na firma que desse lugar a este meu problema “existencial”… Que eu dê conta…

    Apetece-me simplesmente andar, mesmo que o dia esteja frio e chuvoso. À entrada, ou saída, depende da circunstância, do meu prédio, olho para o vazio, mas tenho que me por em marcha porque já disse umas 5 ou 6 vezes, boa-noite aos vizinhos que entraram… ou saíram?... O melhor é começar a entrar na noite e na rua, não vá algum vizinho sair e começar a olhar para mim com ar interrogativo. Não é que isso me importe, mas, não vale a pena dar azo a comentários de espécie alguma. Quero dizer… Não me importo, mas estou a importar-me. Isto é que é coerência!

    Começo a andar pela rua depois de ter encostado o pequeno portão que separa a entrada do prédio da rua. Uns seis metros, que são suavizados com uma escada de três degraus, até ao pequeno patamar de saída… onde o portão “trabalha”. Subo a gola do meu “kispo” porque afinal o vento está fresco. Não vou mesmo buscar o chapéu, até porque as nuvens continuam bem longe.

Entro numa rua de movimento… deslizo para o lado de um centro comercial, mas vou para o outro lado da rua, onde as arcadas do prédio enorme, ao longo de 200 metros, me encobrem… sabe-se lá de quê. Hoje estou assim. A não querer conversas, nem ver, nem ser visto. Vou andando com passo lento, não demasiado para não dar a entender que estou a passear a minha má consciência a esta hora… Lá estou eu a ter problemas com o que possam ou não pensar, comentar, ou sorrir, os outros… Preconceito cretino! Idiossincrasias… problemas para psiquiatria resolver, que sei eu?... O certo é que não pretendo dar a entender… Isto está bonito! Sim senhor! Ou seja, os males que muita gente tem? Quer dizer… será que têm? Ao que a experiência de vida me mostra, é verdade. Todos temos, ou enfermamos temporariamente deste mal. Mas não devem ter este tocar a rebate no espírito. Que pensamentos estes. Porque razão tinha que me acontecer semelhante coisa... Ao que me consta, os outros parceiros não os relevam. Matam.

Esta minha consciência, é uma espécie de sogra… que me desculpem as sogras, algumas, mas, a sua permanência nas nossas vidas, nunca mais acaba.

    Bom, a esta hora queria estar com o cérebro como muitos cidadãos o têm. Vazio. Mas não consigo. Apesar considerar, depois disto, que a mulher pode ir para todo o lado, desde que não seja connosco, queria tê-la presente para poder debater com ela este conflito com que me presenteou. Sim, o não conseguir admitir que estamos num comboio onde somos acionistas, cobradores, condutores, passageiros, planeadores dos trajetos, mas agora, demos conta que afinal o trajeto não presta. Não nos leva onde pensávamos, onde determinámos que fosse, onde terminava um dos objetivos de vida. Servir de exemplo aos nossos filhos, verem que existe a possibilidade de terem sempre uma estação melhor que a nossa inicial, como seu ponto de partida e poderem planear os trajetos a caminho da sua realização, como seres sociais de uma cadeia que se pretende mundial.

    Começo a ver, ao longo do percurso que tomo, que afinal o grilo falante tem fundamento, no desaire que foi o “nosso projeto”! Que projeto foi e quando? O ter querido ser, afinal o quê? Rigorosamente certo! Sim, mas, agora não entendo. Era ser, ou ter projeto? O que estava escrito no nosso projeto, quer dizer, nosso, bom, de alguns que afinal entraram nele…

    Tinha como base o progredir-se como seres humanos, em família… nesta sociedade, no país, para que graças a essa progressão, seja, poder participar para que outros que não conseguem ter tantas hipóteses, possam ter dignidade no viver diário e conseguirem, posteriormente, ajudar igualmente, através de incentivos nossos à sua produtividade integrando assim o coletivo nacional. É claro que não é possível ajudar constantemente cidadãos que vivem só de ajudas e não pretendem colaborar para o bem coletivo com a força do seu trabalho e depois, em evolução, a força do seu empenho e intelectualidade possível.

    Comecei a não ser “solidário”, dirão alguns, ou diriam se me ouvissem o pensamento. Quantas vezes alguns destes cidadãos vêm a terreiro com a frase da necessidade de diálogo? São apoiados por alguns que em cima de um palanque legal reclamam o diálogo. Só que nesse dialogar, dizem efetivamente o que querem e não suportam, ah, até nem ouvem, o que os outros pensam e reclamam. Com estes só o eco consegue a última palavra

    Continuo rua abaixo, agora a entrar numa zona onde uma rotunda está a ser reconstruida, enorme que só visto… exigências arquiteturais. Parecem-me apertadas as circulares que levam a outras ruas. Um caminhão a manobrar aqui não consegue virar, sem ter que subir os passeios… Claro que ninguém quer saber se eu quiser mudar de casa, que vou ter necessidade de um caminhão que me trate da mudança… Enfim, não é que ser arquiteto paisagista faz doer a cabeça?

    Está a chover outra vez. Vinha distraído com estes pensamentos que nem dei conta que me estava a molhar, mas isto de arejar as ideias, dá dores de cabeça também, entretanto, nestas alturas, ninguém está connosco neste “nosso estar”. O certo é que queremos estar sozinhos… O que nos foi acontecer. Bom, agora tenho que correr para baixo de uma varanda larga, aliás onde já se encontra um cidadão que também sacode o casaco e resmunga qualquer coisa.

    Já encostado à parede, porque a chuva vem inclinada, trazida pelo vento, levo a mão ao cabelo e tenho uma exclamação de contrariedade o que leva o meu companheiro de lugar a exclamar:

    - Meu amigo, esta noite está muito esquisita. Ora não se vê nuvem, ora temo-las todas a despejar uma imensidão de água… isto está jeitoso a começar o ano. Água não vai faltar com certeza.

    Arrisquei:

    - Com tanta água que os nossos dirigentes…

    - Tem toda a razão! - Atalha o meu vizinho de “pala”. A água é tanta que tem que sair por algum lado! E saiu! É triste mas é uma verdade incontestável. Não é mais possível continuar com este tipo de pessoas à frente de um país! Não é o sacrifício que importa agora, muito embora o sacrifico seja doloroso, não, é o nosso laxismo que leva a esta situação. Queremos que tratem de nós, mas que não nos incomodem. Espantoso. Falamos: “Eles, isto Eles aquilo”, deveríamos dizer, “nós vamos fazer”! Nós é que não nos importamos com quem está no governo e na assembleia. Aqui é que está a causa do nosso eterno infortúnio…

    Não sei se devo responder, se ficar calado, mas, perante esta frontalidade por parte deste desconhecido, acho que vou a terreiro também:

    - Concordo consigo. O jogo de futebol, a telenovela, o aquecedor, o ar condicionado, os chinelos, sempre foram o nosso complemento de personalidade. Continuamos mesmo assim, a ser otimistas nestes tempos.

    - Os otimistas são normalmente pessoas que não se preocupam com o que à sua volta sucede, enquanto não lhes suceder. Só que agora, como bem disse, os otimistas, e como sempre, são os mais contestatários. Se tivessem lutado em bloco, com planos lógicos e armas coerentes, tínhamos atalhado este problema na sua maior extensão… Vejamos a nível do ensino… sou professor, porque razão é que permitimos que o ministério, ao longo de trinta anos fosse cortando a parte curricular e carga horária de todos os níveis de ensino, falo no secundário, nas disciplinas que “só davam despesas”? Refiro-me, por exemplo, ao Ensino Técnico e Tecnológico. Ora o retirar sistemático de (horas curriculares e mais tarde currículos porque era impossível ministrar a mesma matéria em menos tempo e sem o material demonstrativo) ou seja, despesas a nível oficinal e laboratorial... será que deu um outro alento às finanças públicas? Talvez sim… desculpe-me, estou a abusar da sua paciência?

    - Não, não, faça favor de continuar. Tenho prazer em ouvi-lo e ao menos saber de alguém que está por dentro da matéria, qual a sua opinião, e juntar mais uma razão à razão final… Agradeço que continue.

    Pois dizia, que o diminuir de matérias lecionáveis, com a colaboração das comissões de pais, lembro-me perfeitamente na altura, que a representante dos pais a nível nacional esteve no ministério a negociar cargas horárias e currículos, nomeadamente nos cursos de eletrotecnia, eletrónica, dentro da área, não posso precisar quais os nomes dos cursos na altura… se estivesse em casa teria à mão o que aconteceu e em que cursos aconteceram os cortes, mas dizia, foram esses senhores que contribuíram, igualmente para o baixar de nível dos cursos e a sua utilidade, sempre apoiados no interior do ministério por indivíduos que, eventualmente se intitulariam como professores… não sei em que ano, ou à quantos anos não davam aulas, mas serviam as suas opiniões aos políticos para se escudarem nestas sangrias curriculares, mas dizia, não pensaram os senhores que negociaram isto para os seus filhos poderem ter tempo para se prepararem para as faculdades, com bons explicadores, esquecendo-se que os pais que habitam e labutam nas cidades mais pequenas, vilas e aldeias, muitas vezes não têm dinheiro para o almoço dos filhos na cantina. Necessitam dar aos filhos uma arma básica, breve… para entrarem no mercado de trabalho com algumas qualificações, quanto mais para pagar explicadores ou a remota entrada numa faculdade.

Bom, desculpe-me, mas como já não chove muito, vou dar mais uma corrida. Boa-noite!

Saudei-o e fiquei a pensar no que me acabou de dizer de supetão. O homem estava com isto entupido. Sem dúvida. Mas tudo o que disse é lógico, faz sentido, a ausência de exames com o objetivo de analisar as matérias dadas, sim, isto só podia redundar num contínuo fracassar do ensino… na nossa má qualidade. Os professores qualificados, aqui não têm culpa nenhuma, ao contrário do que a sociedade meteu na cabeça, ou lha meteram…

Vou andando, agora para o lado da ex-passagem de nível do ex-comboio. Uma revolução completa na cidade. Vai ser um metro superficial. Já lá vão duzentos milhões gastos… Vou agora em direção ao estádio. Ali não existem varandas que me defendam… o melhor é continuar avenida abaixo. Pelo caminho relembro o que um colega disse sobre mais uma história, a da avaliação e agora o tempo de serviço congelado dos professores. É professor, mas nunca concordou com greves sem sentido…

Meu Deus, agora cai bem. Éh, aguinha boa. Tenho que me proteger. Vamos ver se dá aqui nesta entrada deste café que já está fechado e tem esta entrada larga. Toca a correr e entrar.

- Boa noite, desculpe entrar assim desta forma… mas esta chuva apanhou-nos a todos em contra-pé.

Responde-me uma senhora de cor com uma criança de uns 8 ou 9 anos:

- Boa nôte sinhô. É vérdade mesmo. Temos chuva que dá p'ra encher bidon.

- Pois é, já é demais. Segundo dizem os entendidos os aquíferos estão já a transbordar…

- Não sei bem do que o sinhô fala, mas parece que todo o tereno já só é lama… Muito do périgoso… aquilo que aconteceu lá fora, os déslizes dos terreno e as morte…

- Aqui perto também aconteceu uma queda de uma barreira. Levou as árvores atrás de si, mas a inclinação era mais de 45%... Felizmente não aconteceu nada de maior.

- Bom, dessas coisa da porcentagem eu não sei, só que me disseram, o que o sinhô disse, foi aqui perto.

- Pois foi. Mas já está resolvido e felizmente que não aconteceram mortes.

- Isso é que é chatiação, mas a vida é assim, temos que costumar com ela.

- É verdade minha senhora, é verdade.

    - De água já chegava, até que a gente quer secar a roupa e secar o chão e fica tudo molhado, sem jeito mesmo.

    - Tem razão. Mas como a senhora disse à pouco, temos que nos acostumar com isto.

    - Lá no meu tera, não chove tanto tempo assim. Quando chove, é p’ra chovê. Quando tem calor, é que tem mesmo!

    - A senhora é de que país?

    - Da minha Angola quirida, de Luanda mesmo, nasceu, criei no bairro de São Paulo, e lá fui criando meus fiuos. Um me troxe p'ra cá e já cá estou faz 30 ano. Vou ajudando ele no que posso. Este é meu netinho e vai comigo sempre que pode p’ra casa de minha patroa, porque vem tarde e… o senhor sabe… já se me meteram… uns camundongos mesmo, nem que sendo véia. Mas quando vem meu netinho, não sê metem.

    - Sabe que isto, é complicado, há alguns anos não era assim. Podia uma senhora, uma moça andar na rua às 2, 3 da manhã, ninguém se metia e, não foi à muitos anos assim. A segurança tem vindo a degradar-se, não por falta, é até mais que nesses anos a que me refiro, mas, os valores que as pessoas tinham, perderam-se, sabe, as referências, assim o respeito pelos outros, pela sua integridade, foi-se perdendo, no caso, rapidamente e as forças de segurança não conseguem estar em todo o lado. Se nos anos referidos não existissem valores a referenciar, respeito pelo outro, como agora não há, as forças de segurança, (estou a olhar para a mulher e sinto que ela não está a entender muito bem o que digo) ou seja, a policia e os guardas não conseguiam fazer nada. Se calhar era bem pior.

    - O que o sinhô disse, me párecéu certo. O réspêito já é nada. Pode ser que para estes mininos a vida seja mais mãe que agora é… O sinhô é de cá?

    - Não sou, vivo nesta cidade, faz 40 anos, só mais dez que a senhora. A senhora trabalha numa casa de família, é?

    - Sim sinhô. Os meu patrão são professor nos facurdade de medicinas. Eu saio de casa deles por vorta das 9, 9 e méia que é quando eles vorta a casa. Faz a lida toda, come e pronto, vem embora. Hoje até que fiz um pirão que os sinhô gosta, à moda do Huambo… eles vai ficar com quecho no chão. Vai, vai!

    - Pelo que estou a ver a senhora é uma cozinheira de mão cheia…

    - Não gosto de me gabá, mas até que sou mesmo. É que minha fálécida mãe sempre me botava ná cozinha e ensinava. Se não estava com o témpéro certo ihihih, caía pau dê manga nos costado. Mulhé dura que só ela!

    - Já estou a ver que a senhora não tinha sossego. Era só a senhora na cozinha?- Não, quási sempre, mas minhas trés irmã também tinham que ver como era e espreitar p’ra ninhuma falhá, se não, comiam as quatro! Nunca sé faiou muito. Doía se faiava…

    Ouvia o que ela dizia e espreitava para a iluminação do candeeiro mais próximo e via a chuva a cair, agora não tão intensa, respondi:

    - Estou a ver que a senhora sua mãe, cuidado com ela.

    - Pois era. Ágora a gente vai. Boa notê sinhô.

    - Tenha uma boa noite também.

    Olhei a vê-la sair com o menino e a pensar que a vida, foi-me madrasta e não querendo ser o único deste “casamento”, todos os do meu país estão numa sorte, que só visto...

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