EXCELENTE REFEIÇÃO
Não está longínquo, está perto dos meus afetos, do meu respirar, das memórias que servem para curar males atuais.
Esta breve história que conto resumidamente, passou-se na Huíla, (Sá da Bandeira).
O dia estava quente como sempre. Saio da pensão para ir para o quartel. Já na praça dos fundadores volto atrás porque me tinha esquecido de umas chaves importantes. Abriam um armário que possuía no seu interior material para reparação de um equipamento que tinha no STM (serviço de telecomunicações militares). Entrei no quarto e depois de localizar o pretendido e meter no bolso, abro a janela para que o quarto areje, sendo tão estreito, o melhor era abrir a janela. Esquecimento meu… Do outro lado da rua, uma janela está aberta, precisamente na casa em frente, rés do chão, vejo pela primeira vez, uma moça a olhar para a minha janela. Nunca a tinha visto, até porque não é meu hábito estar muito tempo no quarto nem a espreitar o que se passa na frua ou nas casas fronteiras. Normalmente estou no Flórida ou no Tirol, a beber qualquer coisa com os meus camaradas.
Ela olha para mim. Com certeza que é para mim. Fico especado a olhar. Convenhamos que àquela hora da manhã é uma boa hora para ir embora para o serviço. Mas esta aparição fora da minha previsão… faz com que me detenha.
Recua para o meio do quarto, pareceu-me, para que eu a possa ver. A camisa de noite que tem vestida, é retirada. Fico atónito e encosto-me mais junto do parapeito da janela em ato instintivo, “vá-se” lá saber porquê…
Olho aquele corpo, logo pela manhã. Roda sobre si, está sem soutien com umas cuequinhas, só… o que eu fiz para merecer tão lindo espetáculo?
Estou no parapeito da janela, mais um pouco digamos…
Diz-me “adeus” e fecha lentamente as cortinas da janela.
Tusso e engasgo-me com qualquer coisa. Ainda nem fumei.
Um dia a começar assim, bom vou à Sé e meto uma vela, ai vou vou!
Fico mais uns minutos na janela, agora a olhar para os lados e para baixo, não vão terem-me visto e tínhamos perguntas e quem sabe, sorrisos maliciosos. Saio do quarto apressadamente, desço as escadas e já na rua vou buscar a motorizada que os donos da pensão me tinham dispensado para transporte. Sigo direito à avenida António José de Almeida em direcção ao quartel. Que tormento de inicio de dia. A minha cabeça só faz perguntas e não encontra respostas.
Passei o dia com o pessoal, mas sempre preocupado, melhor, ansioso para que o dia termine, dia de trabalho, entenda-se, muito embora o assunto mais preocupante fosse o “nome” que se devia arranjar para o nosso conjunto, sim, esse era o objetivo no momento. Tínhamos constituído um conjunto musical que iria dar espectáculos, onde precisassem de nós, sobretudo no quartel, ou quarteis.
Consegui com que o vocalista que estava nesta formação musical fosse, bom, com todas as dores possíveis da zona articular do braço e do antebraço, dar uma “volta”, mas isto com a anuência do restante grupo. Se quiser ser correto, o grupo é que me elegeu como vocalista do conjunto. Essa foi a verdade. Adiante. De nome em nome, com a primeira “audição” no quartel, ficou para mais tarde a sua escolha.
Entretanto findou o dia de serviço e como não seria de prever outra coisa, a motorizada, andava mais nesta bendita tarde, do que nos outros dias. Também aqui vá-se lá saber porquê.
Cheguei à pensão, mais afogueado que o normal, facto que não passou despercebido à dona do estabelecimento que me seguiu escada acima, não denotando entretanto que me seguia, para ver no que dava ou seria a tamanha velocidade, enfim, anormal. Entro no quarto, fecho a porta, vou direito à janela que abro ansioso e olho em frente. Puxo de um LM e vai de mandar umas baforadas. Nada está aberto em frente, mas vai estar, penso.
Esperei sem tomar banho até que chegou a hora de jantar. Nem dei conta que as horas se lhe tinham aproximado tanto assim. Pensei na minha burrice. “Mas onde tens a cabeça meu artolas? Pensas que isto é atar e por ao fumeiro? Que tudo é assim como pensas? Pois é… Afinal levaste um bode… Aprende! Pensa com a de cima!”
Troquei de roupa e só depois é que dei conta que estava com a janela aberta. Também, que se lixe. Vou direito à sala de jantar. Já se encontra quase cheia, mas o meu lugar está sempre no mesmo sitio, aliás como o de todos os comensais. Hoje era um peixinho grelhado. Para admirar. Não é normal. Quase sempre é carne.
Está a chegar o grande treinador do Atlético de Sá da Bandeira, um homem vindo do norte do puto, mais propriamente do Porto. Segundo consta, foi um excelente jogador e agora é um bom treinador.
O Jonas, funcionário que se encontra sempre de serviço, transporta uma terrina e dirige-se para o treinador, bom vamos comer este peixinho que está com um ar apetitoso, a julgar pelas travessas que já foram servidas. Olho novamente para o local onde se encontra o Jonas. Mais outro cliente chega. Ouve-se na sala a voz do treinador:
- “Ó rapaz, e eu?”
Todos olham para o local. Jonas depois de servir o cliente mais “recente” nas mesas, faz uma volta de 180 graus e vai em direção à mesa do treinador, pára fazendo uma pirueta com a terrina, o treinador faz um gesto com o braço direito, “encolhendo-o” por forma a que Jonas possa colocar no seu prato, a sopa. Jonas levanta a concha, estica a terrina no braço esquerdo e sai dali para outra mesa, com outro cliente, não sem dar uma volta sobre si e agora a fazer, digamos que, “rali” entre duas mesas, com a terrina e a concha em posição de marcha.
Começam os presentes a ficar apreensivos. O garoto gosta de brincar, mas agora não será bem a altura para isso e com a pessoa que lhe fez o pedido.
Volta à mesa do treinador que se volta a ajeitar para que Jonas o sirva. Numa pirueta, desta vez pára com a concha em riste e quando vai com ela ao prato, volta a introduzi-la na terrina e sai outra vez em direção a outro cliente. Serve esse cliente. Entretanto chamam-no e vem, acelerado, dentro do “corredor” da mesa do “treinador” que apesar de tudo se encontrava calmíssimo, aliás sempre corretíssimo no trato para com os outros, até cerimonioso. Ao passar pelo treinador, este sub-repticiamente, coloca o sapato de tal forma que o miúdo estatela-se ao comprido, com sopa no chão e terrina em cacos. Patrão e patroa vêem ver o que se passa. O Jonas, mulatito, agora “branco”, diz:
- O xindéli eticou os perna para éu cáir!
- Então o senhor faz-me uma coisa destas ao garoto? – Avança o dono da pensão, ao que o treinador responde:
- Não me serviu desde que aqui estou, serviu sempre todos os presentes. Só a mim é que não. Quando à sua queda, faço lembrar ao senhor que não sou pessoa para criar desacatos, muito menos dar confiança aos criados!
- Mas o senhor fez uma coisa que não tem justificação e não abona nada na sua moral!...
- O senhor não deve dizer-me o que eu sou, ou não sou. Não posso admitir um insulto deste tipo. Para já, recolho ao meu quarto porque esta discussão iria levar-nos a uma situação mais grave e eu não me misturo com gente da sua estirpe!
- Olhe que o senhor é que me está a ofender e não devia fazer isto ao garoto, não é admissível. Uma pessoa que faz crer que é muito bem educado. Nunca ninguém me fez isto na pensão. O senhor demonstrou ser um individuo sem carácter. Se não fosse estar aqui…
A esposa intervém a estas palavras do marido, dizendo:
- Não sujes as mãos na cara desse canalha! – Resposta imediata do nosso treinador:
- Canalha, o caralho!
O verniz do grande treinador estalou com estrondo!
A sala, depois de alguns segundos em silêncio, rebentou numa gargalhada. Esta é única. O treinador abandona a sala e o casal recolhe ao seu posto de observação, não sem vermos a senhora, vermelha que nem um tomate e a entrar rapidamente na cozinha. Num ápice tudo está praticamente limpo. Os funcionários foram lestos. Jonas já está com outra terrina na mão que o patrão se apressa a tirar-lhe das mãos.
Viriato Mondeguino
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