segunda-feira, 2 de setembro de 2024

 

O QUE FAZ O CHOCOLATE

 

                        A historia é simples, recuamos cerca de 60 anos. Tudo isto foi real, mas, na cabeça de um cidadão atirado para as longínquas paragens de um território em África, ainda envolta em “mistérios” graças a uma cultura de um povo… orgulhosamente só, aconteciam histórias mirabolantes. Umas com dramatismo, outras hilariantes. As que colocam um sorriso no nosso rosto, ou uma boa gargalhada, são as que nos interessam agora. Vamos contar o que o protagonista nos transmitiu.

                        - Valentim  teve, na altura, uns problemazitos familiares que o levaram a tomar uma decisão. Ir ter com o cunhado que tantas vezes já lhe tinha dito que fosse para lá. Seja, rumar a Angola, mais propriamente para Benguela.

                        E a altura tinha chegado. Aportou num determinado dia no cais do Lobito onde supostamente deveriam estar à sua espera o cunhado, a irmã e quem soubesse.

                        Saiu do barco, dirigiu-se para o sector da Alfândega. Deitou o olhar aos presentes na sala. Era tanta gente… Entretanto ia levantando a cabeça para ver se via por entre aquela floresta humana, o cunhado ou a irmã. A gare marítima estava cheia. Era muita gente… não dava para os ver, a julgar no que via.  Talvez mais lá para fora, pensou. Saiu e junto à porta pousou as pesadas malas. Um rapaz pergunta-lhe:

                        - “Pátrão, eu leva as maras.”

                        Valentim olhou para o rapaz, viu que não parecia ter ar de “gatuno”, seu pensamento imediato, é que lhe tinham dito que se roubava muito naquelas terras, que os animais selvagens andavam nas ruas, que se apanhavam doenças terríveis e todas as barbaridades de gente pouco esclarecida, enfim. Pensou imediatamente: “Afinal, aqui é que vou estar bem, pois até já tinha gente para carregar as malas”. Isto, passava-se em 1955.

                        Desce o primeiro degrau, para tentar vislumbrar o cunhado no parque de estacionamento automóvel, mas nada. Deu-lhe um nó na garganta. Ficou aflito! Quase que tinha vontade de se meter no navio outra vez e regressar, porque ali, ao pé daquela gente, toda de cor, é que ele não ficava por nada deste mundo. A ausência do cunhado fê-lo entrar em “parafuso”. Com o calor infernal que estava pensou que ia apanhar uma doença qualquer. Transpirava por tudo que era poro, do calor e do nervoso. Um bom quarto de hora depois, já com ele a pensar muito seriamente em voltar para o navio, ouve chamar por si.

                        Do parque de estacionamento em frente à entrada da gare marítima, o cunhado, estava a chamá-lo. Vê-o. Quase corre para ele.  Avança uns bons vinte metros, mas, de repente, volta para trás a correr e a pensar:

                        -“Ai as minhas ricas malas! O gajo já mas roubou!”

                        Claro que não. O que conseguiu foi atirar com o rapaz ao chão, porque esbarrou com ele.  Vinha mesmo atrás de si, coitado, atrapalhado com o peso delas.  Pediu-lhe desculpa, perante o ar de gozo do cunhado, a apreciar a cena a uma certa distância. Tudo se estava a compor para Valentim.

                        São dados os grandes abraços que a ocasião proporciona. A lagrimazita que cai, enfim. Seguem para a cidade de Benguela no carro do cunhado.

                        No decorrer da noite, um jantar excelente a dar-lhe as boas-vindas. Valentim, depois de uns verdascos bem gelados, começa a soltar as grandes preocupações que trazia, os bichos-de-sete-cabeças que lhe tinham incutido, ou seja: as tais doenças, os roubos, os animais, etc.

                        A família ri, mas conseguem através de explicações e informações mais precisas sobre o quotidiano, deixar Valentim mais sossegado. Nas possíveis doenças, só para prevenção, era importante tomar Quinino, para prevenção da Malária, ou Paludismo. Mais nada de importante. Aliás, nesse mesmo dia começou por tomar o seu primeiro Resoquina à refeição. Conversa daqui, conversa de acolá, continuam com uma cerveja, daqui, cerveja acolá e, só às quatro da manhã é que resolvem deitar.

                        Ao raiar a manhã aproximava-se o dia de trabalho para o cunhado, e claro, já era tarde para ele. O cunhado come um quadrado de chocolate e Valentim pergunta se também pode comer. Por acaso até lhe apetecia. O cunhado pensa… acaba por dar-lhe dois quadradinhos. Valentim diz que o chocolate é muito bom e lá se vão à deita.

                        Três quartos de hora depois, Valentim ainda não tinha conseguido dormir com tanto calor.

                        Começa a sentir uma cólica nos intestinos... mais outra. Fica alarmado e levanta-se a correr para a casa de banho. Mal tem tempo para se sentar e lá vai tudo fora, quase em líquido. Pensou:

                        -“Ai meu Deus que agarrei uma doença qualquer e eles não me quiseram dizer que se apanham assim! Ai que morro! Ou será qualquer coisa que me fez mal?”

                        No alvorecer foi à casa de banho, umas cinco ou seis vezes. O cunhado quando se levantou, viu-o a sair da casa de banho. Devido ao seu ar, pergunta o que Valentim estava a sentir. Claro, vieram as queixas. Este diz-lhe a sorrir, depois de ter percebido o que se estava a passar, que isso não era nada, que foi qualquer coisa que lhe alterou o funcionamento digestivo, mas que amanhã estaria tudo bem.

                        Passou o dia com um ligeiro mau estar, mas acabou por passar.

                        Uns tempos depois, Valentim conseguiu ir para o Cubal, com um emprego de carpinteiro. Foi para uma obra de um determinado indivíduo e a coisa ia bem. Era um excelente profissional, sabia de obras. O empreiteiro deu-lhe a confiança total, colocando-o a dirigir a obra.

                        Valentim, um dia foi ao hotel do “Marques” comprar umas tabletes de chocolate. Gostava de chocolate. Parou no passeio com ar meditativo. De seguida dirige-se à Farmácia onde comprou duas caixas de “chocolate”. Foi para a obra. Estavam a trabalhar os doze operários, desde os pedreiros, os ajudantes, enfim, todo o pessoal. Como quase todos são gulosos, e ele começou a comer o chocolate na frente da malta... claro, não de todos ao mesmo tempo, fazia só para um ou dois verem, o pedido dos trabalhadores era imediato:

                        -“Ó patrão, dá um bocadinho.”, Valentim fazia de contas que dava contrariado, mas dizia sempre:

                        - “Dou, mas não dizes nada a ninguém?”

                        É claro que não diziam, só que todos o viram comer e claro, pediram. Valentim lá dava três ou quatro quadrados a cada um.

                        A tarde avançava menos do que o previsto. O Valentim começou a ficar preocupado:

                        -”Que diabo, não acontece nada a esta malta?”

                        Ia espreitando... e o seu plano, ao que estava a ver, iria por água abaixo... Mas de repente, vê um aprendiz a subir as escadas com um balde de massa à cabeça e a meio das escadas o rapaz pára. Valentim pergunta:

                        -”Então o que é que foi? A escada está mal?”   - A resposta deliciou Valentim:

                        - “Aka patrão, o meu bariga tá farar”[.1] [1].

                        - “Está o quê?” 

                        Valentim vê o rapaz a descer devagarinho, com as pernas apertadas. Larga o balde de massa para o chão e desata a correr, se se pode chamar a isso, correr, com as pernas apertadas, em direcção ao capim. Começa a olhar para todos. Vê um dos operários a deitar a massa no tijolo e a suspender o gesto, a meio, com a massa a cair entre ele e a parede. Claro que faz logo a pergunta:

                        -”O que é que se passa o Chilomgo?”.

                        -”Éh, patrão, tou de caganéra”.

                        Lá vai outro em direcção ao mato. E outro e, outro e outro, sempre todos a andarem com as pernas apertadas em direcção ao capim. Ao outro dia, o delegado de saúde foi perguntar ao empreiteiro se algo tinha acontecido, se tinham comido alguma coisa por ali e o que tinha sido.

                        O empreiteiro de nada sabia. Perguntou ao Valentim. Este disse o mesmo, que até estranhou o caso, enfim, uma data de tretas que teve de inventar. O certo é que ninguém disse que tinha comido chocolate que Valentim ofereceu.

                        O empreiteiro andou aflito durante uma semana por causa da falta dos operários e ao outro dia, um vizinho da obra fartou-se de berrar que ainda matava algum gajo que ele soubesse ter ido ao seu galinheiro fazer as necessidades. Segundo contou, furioso, tinha lá adubo para mais de dez hectares de terreno.

                        Valentim calou isto, durante dois anos. Contou posteriormente numa patuscada, com todos os gestos dos protagonistas.  Até a história do cunhado foi contada. Só muito mais tarde esse confessou ter-lhe dado um laxativo no primeiro dia em que veio para Angola. O resultado está à vista. Fez o mesmo ao pessoal trabalhador. Uma “maldadezinha”, no seu dizer. Não seria uma partidinha, enfim…

                        São estas as pequenas histórias que completam uma vida.

 



[1] Falar


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 [.1]Falar

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