O QUE FAZ O CHOCOLATE
A
historia é simples, recuamos cerca de 60 anos. Tudo isto foi real, mas, na
cabeça de um cidadão atirado para as longínquas paragens de um território em
África, ainda envolta em “mistérios” graças a uma cultura de um povo…
orgulhosamente só, aconteciam histórias mirabolantes. Umas com dramatismo,
outras hilariantes. As que colocam um sorriso no nosso rosto, ou uma boa
gargalhada, são as que nos interessam agora. Vamos contar o que o protagonista
nos transmitiu.
-
Valentim teve, na altura, uns
problemazitos familiares que o levaram a tomar uma decisão. Ir ter com o
cunhado que tantas vezes já lhe tinha dito que fosse para lá. Seja, rumar a
Angola, mais propriamente para Benguela.
E
a altura tinha chegado. Aportou num determinado dia no cais do Lobito onde supostamente
deveriam estar à sua espera o cunhado, a irmã e quem soubesse.
Saiu
do barco, dirigiu-se para o sector da Alfândega. Deitou o olhar aos presentes
na sala. Era tanta gente… Entretanto ia levantando a cabeça para ver se via por
entre aquela floresta humana, o cunhado ou a irmã. A gare marítima estava
cheia. Era muita gente… não dava para os ver, a julgar no que via. Talvez mais lá para fora, pensou. Saiu e
junto à porta pousou as pesadas malas. Um rapaz pergunta-lhe:
-
“Pátrão, eu leva as maras.”
Valentim
olhou para o rapaz, viu que não parecia ter ar de “gatuno”, seu pensamento
imediato, é que lhe tinham dito que se roubava muito naquelas terras, que os
animais selvagens andavam nas ruas, que se apanhavam doenças terríveis e todas
as barbaridades de gente pouco esclarecida, enfim. Pensou imediatamente: “Afinal,
aqui é que vou estar bem, pois até já tinha gente para carregar as malas”. Isto,
passava-se em 1955.
Desce
o primeiro degrau, para tentar vislumbrar o cunhado no parque de estacionamento
automóvel, mas nada. Deu-lhe um nó na garganta. Ficou aflito! Quase que tinha
vontade de se meter no navio outra vez e regressar, porque ali, ao pé daquela
gente, toda de cor, é que ele não ficava por nada deste mundo. A ausência do
cunhado fê-lo entrar em “parafuso”. Com o calor infernal que estava pensou que
ia apanhar uma doença qualquer. Transpirava por tudo que era poro, do calor e
do nervoso. Um bom quarto de hora depois, já com ele a pensar muito seriamente
em voltar para o navio, ouve chamar por si.
Do
parque de estacionamento em frente à entrada da gare marítima, o cunhado,
estava a chamá-lo. Vê-o. Quase corre para ele.
Avança uns bons vinte metros, mas, de repente, volta para trás a correr
e a pensar:
-“Ai
as minhas ricas malas! O gajo já mas roubou!”
Claro
que não. O que conseguiu foi atirar com o rapaz ao chão, porque esbarrou com
ele. Vinha mesmo atrás de si, coitado, atrapalhado
com o peso delas. Pediu-lhe desculpa,
perante o ar de gozo do cunhado, a apreciar a cena a uma certa distância. Tudo se
estava a compor para Valentim.
São
dados os grandes abraços que a ocasião proporciona. A lagrimazita que cai,
enfim. Seguem para a cidade de Benguela no carro do cunhado.
No
decorrer da noite, um jantar excelente a dar-lhe as boas-vindas. Valentim,
depois de uns verdascos bem gelados, começa a soltar as grandes preocupações
que trazia, os bichos-de-sete-cabeças que lhe tinham incutido, ou seja: as tais
doenças, os roubos, os animais, etc.
A
família ri, mas conseguem através de explicações e informações mais precisas
sobre o quotidiano, deixar Valentim mais sossegado. Nas possíveis doenças, só
para prevenção, era importante tomar Quinino, para prevenção da Malária, ou
Paludismo. Mais nada de importante. Aliás, nesse mesmo dia começou por tomar o
seu primeiro Resoquina à refeição. Conversa daqui, conversa de acolá, continuam
com uma cerveja, daqui, cerveja acolá e, só às quatro da manhã é que resolvem
deitar.
Ao
raiar a manhã aproximava-se o dia de trabalho para o cunhado, e claro, já era
tarde para ele. O cunhado come um quadrado de chocolate e Valentim pergunta se também
pode comer. Por acaso até lhe apetecia. O cunhado pensa… acaba por dar-lhe dois
quadradinhos. Valentim diz que o chocolate é muito bom e lá se vão à deita.
Três
quartos de hora depois, Valentim ainda não tinha conseguido dormir com tanto
calor.
Começa
a sentir uma cólica nos intestinos... mais outra. Fica alarmado e levanta-se a
correr para a casa de banho. Mal tem tempo para se sentar e lá vai tudo fora,
quase em líquido. Pensou:
-“Ai
meu Deus que agarrei uma doença qualquer e eles não me quiseram dizer que se
apanham assim! Ai que morro! Ou será qualquer coisa que me fez mal?”
No
alvorecer foi à casa de banho, umas cinco ou seis vezes. O cunhado quando se
levantou, viu-o a sair da casa de banho. Devido ao seu ar, pergunta o que Valentim
estava a sentir. Claro, vieram as queixas. Este diz-lhe a sorrir, depois de ter
percebido o que se estava a passar, que isso não era nada, que foi qualquer
coisa que lhe alterou o funcionamento digestivo, mas que amanhã estaria tudo
bem.
Passou
o dia com um ligeiro mau estar, mas acabou por passar.
Uns
tempos depois, Valentim conseguiu ir para o Cubal, com um emprego de
carpinteiro. Foi para uma obra de um determinado indivíduo e a coisa ia bem.
Era um excelente profissional, sabia de obras. O empreiteiro deu-lhe a
confiança total, colocando-o a dirigir a obra.
Valentim,
um dia foi ao hotel do “Marques” comprar umas tabletes de chocolate. Gostava de
chocolate. Parou no passeio com ar meditativo. De seguida dirige-se à Farmácia
onde comprou duas caixas de “chocolate”. Foi para a obra. Estavam a trabalhar
os doze operários, desde os pedreiros, os ajudantes, enfim, todo o pessoal.
Como quase todos são gulosos, e ele começou a comer o chocolate na frente da
malta... claro, não de todos ao mesmo tempo, fazia só para um ou dois verem, o
pedido dos trabalhadores era imediato:
-“Ó
patrão, dá um bocadinho.”, Valentim fazia de contas que dava contrariado, mas
dizia sempre:
-
“Dou, mas não dizes nada a ninguém?”
É
claro que não diziam, só que todos o viram comer e claro, pediram. Valentim lá
dava três ou quatro quadrados a cada um.
A
tarde avançava menos do que o previsto. O Valentim começou a ficar preocupado:
-”Que
diabo, não acontece nada a esta malta?”
Ia
espreitando... e o seu plano, ao que estava a ver, iria por água abaixo... Mas
de repente, vê um aprendiz a subir as escadas com um balde de massa à cabeça e
a meio das escadas o rapaz pára. Valentim pergunta:
-”Então
o que é que foi? A escada está mal?” -
A resposta deliciou Valentim:
-
“Aka patrão, o meu bariga tá farar”.
-
“Está o quê?”
Valentim
vê o rapaz a descer devagarinho, com as pernas apertadas. Larga o balde de
massa para o chão e desata a correr, se se pode chamar a isso, correr, com as
pernas apertadas, em direcção ao capim. Começa a olhar para todos. Vê um dos
operários a deitar a massa no tijolo e a suspender o gesto, a meio, com a massa
a cair entre ele e a parede. Claro que faz logo a pergunta:
-”O
que é que se passa o Chilomgo?”.
-Ӄh,
patrão, tou de caganéra”.
Lá
vai outro em direcção ao mato. E outro e, outro e outro, sempre todos a andarem
com as pernas apertadas em direcção ao capim. Ao outro dia, o delegado de saúde
foi perguntar ao empreiteiro se algo tinha acontecido, se tinham comido alguma
coisa por ali e o que tinha sido.
O
empreiteiro de nada sabia. Perguntou ao Valentim. Este disse o mesmo, que até
estranhou o caso, enfim, uma data de tretas que teve de inventar. O certo é que
ninguém disse que tinha comido chocolate que Valentim ofereceu.
O
empreiteiro andou aflito durante uma semana por causa da falta dos operários e
ao outro dia, um vizinho da obra fartou-se de berrar que ainda matava algum
gajo que ele soubesse ter ido ao seu galinheiro fazer as necessidades. Segundo
contou, furioso, tinha lá adubo para mais de dez hectares de terreno.
Valentim
calou isto, durante dois anos. Contou posteriormente numa patuscada, com todos
os gestos dos protagonistas. Até a
história do cunhado foi contada. Só muito mais tarde esse confessou ter-lhe
dado um laxativo no primeiro dia em que veio para Angola. O resultado está à
vista. Fez o mesmo ao pessoal trabalhador. Uma “maldadezinha”, no seu dizer.
Não seria uma partidinha, enfim…
São
estas as pequenas histórias que completam uma vida.