sábado, 5 de fevereiro de 2022

 

CAÇA E... PESCA.



Fui convidado para ir até à fazenda do meu amigo Matos, com a família. Tínhamos uma almoçarada e depois, eu, o Matos, o Borges, e o Tavongo íamos dar uma volta pela fazenda. Finalidade, caçar alguma coisa. Claro que na fazenda, como o Matos dizia, a caça não era nenhuma, só umas cabrazitas, eventualmente uns glengues, estes últimos só quando se “enganavam no caminho”, no dizer do anfitrião. Quando lhes falei em coelhos e nas perdizes, olharam um o outro (Matos e Borges). Matos diz:

- Isto não é o “puto” ò “Xicoronho”. (Eu tinha vindo de Sá da Bandeira, daí o alcunha). Quem é que quer comer perdiz ou coelho, aqui? Vamos ver se nos aparecem umas cabras, mas duvido. Já vi que trouxeste a armazita (caçadeira Liege de canos paralelos com 77 de cano). Tudo bem, se vires alguma coisa atira.

Mas não devias, porque o susto que provoca essa arma aos animais… nunca mais cá voltam.

- Vai ser uma quantidade, oh, oh. O pessoal está em duas frentes a cortar folha? - Acrescenta Borges, mas fazendo a pergunta ao Matos.

- Pois, se calhar nem uma perdiz vais ver, com o barulho que faremos, normalmente só ao entardecer nas picadas entre as fiadas do sisal. - Remata Matos.

- De qualquer maneira, levo a “fisga”, como dizes. Só para dar o gosto ao dedo.

Matos concorda com um aceno de cabeça. Chama o Tavongo e pergunta-lhe qualquer coisa. Este responde, olhando depois para mim, como a dizer: “Este “branquito” vem caçar “borboletas”” aqui? Matos informa-nos:

- Tavongo diz que és capaz de ter sorte porque andaram a meter água numa zona de plantio e as picadas estão cheias de água recente, logo quando entardecer, as perdizes descem à picada de certeza absoluta.

Anui satisfeito. Mas pensei em seguida que não ia andar por ali ao entardecer. Dirigimo-nos para a mesa colocada fora, no pátio, junto às escadas de acesso à casa. Um excelente lugar com sombra fornecida pelas árvores de grande porte plantadas no local, há muitos, muitos anos. Uma delas era uma magnifica magnólia. Não comum pelo que eu sabia. O que se apresentava na mesa era um manjar digo de uma boda de casamento, desde o arroz de pato, aos bifes de palanca, aos doces variados, e muitos. Vinho do puto, fresco, onde predominavam o tal de Garcia e o “compadre” Mateus.

Às três horas, pedimos, o trio aprazado, licença às respetivas mulheres e demais presentes, para sairmos da mesa.

Tavongo já se encontrava no jipe à nossa espera junto à zona das oficinas. Subimos, armas arrumadas, abertas, e seguimos pela picada maior. Matos ia parando aqui e acolá, para perguntar aos funcionários que se lhe deparavam pelo caminho, como ia tudo e dando algumas respostas a quem as solicitava, tudo em dialeto. Natural, para quem não tem contacto com o dialeto não entendia nada.

Uns quilómetros para a frente, já fora da zona do plantio do sisal, Tavongo salta do jipe, como faz sempre que surge algo no terreno de interesse e começa a aperceber-se de qualquer coisa. São pegadas, cá para mim. Àquela hora, em plena tarde, não valeria a pena correr para que sitio fosse, os animais nem pouco mais ou menos estariam por ali. Isto sou eu a pensar, sabedor destas “coisas” da caça e comportamento animal... O jipe, agora com Matos a conduzir, seguia a cerca de três ou quatro quilómetros à hora, ao lado do nosso guia. Este pára uns trinta metros à frente, do local onde tinha começado a investigação, olha para Matos e diz:

- Minino, o que está áqui é jávali. Tem hora já, tárvez uma. Fôra no lado do Sirveste, lá tem milho pronto p'ra apanhá e lá vai tuto.

- Uma hora? Quantos pensas que são? - Pergunta o Borges.

- Uns cinco ou seis, deve ser uma família. - Responde Matos.

- Como é que sabes? - Volta a perguntar Borges.

- Andas nisto há tanto anos e ainda não sabes ler o chão? Não sabes ver o espezinhado? Pergunta-lhe.

Ia para falar mais mas Tavongo atento responde:

- É famiria mésmo. Sete.

- E então? Agora o que dizes? Pergunta Matos a olhar para Borges.

- Então? Nada.

- Sobe – Diz Matos para Tavongo.

Este já tinha entrado e o jipe ruma para o local que o funcionário tinha previsto. Salto daqui, salto dali, vamos em direção a um local onde parte do gado do Matos pastoreava, isto junto a uma zona onde se tinha plantado milho em grande quantidade.

Encontrámos o pastor Silvestre com os seus três ajudantes e dois belíssimos cães que quando se aperceberam que era o Matos, correram em direção a ele e não cabiam de contentes em volta dele. Matos sai do jipe e faz um sinal ao Tavongo. Este salta para o chão, dá a volta e entra para o volante. Matos dirige-se ao pastor, por entre festas aos cães e pergunta:

- Silvestre... (dialeto Umbundo).

Percebi depois porque o Borges traduzia, quase em simultâneo: “ Perguntou se tinham visto javalis. Responderam que não mas os cães deram conta de que eles estavam perto e saíram atrás. Voltaram meia hora depois, mas sem problemas. Deram os rapazes a volta ao milheiral e só viram marcas no chão, mais nada. Os cães devem ter posto tudo em debandada”

Matos dirige-se para o jipe e pergunta:

- Ouviram o que ele disse? - Borges respondeu.

- Ouvi e já traduzi...

Matos pergunta a Tavongo:

- O que achas? Vamos ver onde estão?

Tavongo responde.

- Náo. Náo vare e a pena. Os cãos levaram eles p'ra longe. Se minino quisé ver, tarvez que tenha fome e vortáste.

- Pensei nisso Tavongo, pensei nisso. Deste lado as maçarocas estão prontas, se calhar não resistem a uma boa comida, mas é perto da casa do guarda, lá mais abaixo. Mesmo assim vamos lá. Vai em frente.

Andámos mais uns bons mil metros. Segundo Matos tínhamos percorrido a parte mais estreita da plantação. Começamos a contornar a plantação andando mais uns dois quilómetros até voltarmos a entrar quase no mesmo local onde tinha estado o pastor. Neste momento o milheiral tinha ficado muito para trás. A volta que demos não era só à volta do milho. Aliás, tínhamos entrado numa zona de capim baixo. Picadas típicas das que se faziam entre as plantações do sisal para se conseguir meter o trator e os atrelados que levariam as folhas para as desfibradoras. Seriam futuras zonas a serem plantadas. De pegadas dos javalis, nada. Evaporaram-se. Parámos junto a um imbondeiro. Tavongo diz-me para olhar para o fundo da picada. O jipe mantêm-se a trabalhar. Vejo uma boa dezena de perdizes a comer insectos e talvez uma ou outra areia para a moela funcionar melhor, a 100 metros de nós. Pergunto em voz baixa:

- O que estão a fazer, a comer o que?

Matos responde igualmente em voz baixa:

- Talvez salalé e a meter areias na moela. Eventualmente uma ou outra coisa que lhes interesse, mas também me parece que estão para comerem as sementes de massanbala que está ali, ao fundo, do lado direito.

Saio do jipe com a caçadeira e dirijo-me para a direita, para não ser visto. Este lado, além de ter o capim bastante alto, tem um friso de uma espécie de cedros, o que facilita a minha progressão a coberto das lindas aves. Baixo-me, continuo para a direita e a coberto dos cedros vou em direção, agora, do bando. Ficam os três no jipe à espera que eu regresse, com perdizes, é claro.

Continuo, agora mais colado aos cedros. Baixo-me ainda mais. Já devo estar perto das perdizes. Estou a ver uma que deve estar alerta pois parou de comer e olha na direção onde me encontro. Baixo-me ainda mais. Avanço mais devagar, a roçar os cedros, encostado aos troncos. Paro. Desloco-me um pouco para a direita, por causa de um arbusto com picos, para junto a uns nenúfares, achei estranho, mas as perdizes eram o meu foco. De repente sinto-me deslizar para trás por sobre o capim húmido. Tento segurar-me a um ramo de cedro por onde passei a deslizar. Agito-me e sinto que estou a entrar dentro de água. Esta agora, espanto meu. Estou rodeado de vegetação alta.

Entro mais ainda e a continuar a escorregar numa lagoa ou lá o que é. Toda ela tem erva e arbustos e nenúfares. Não vejo a água mas já a sinto. Agora com uma enorme chapada de água porque me agito e faço com que a minha entrada seja mais rápida. Tento com a mão esquerda segurar-me aos arbustos na margem. Estou aflito, esbracejo mas não largo a arma, grito. Sinto-me a deslizar, agora mais devagar mas lentamente para… um fundo qualquer. Acho que é lodo onde me encontro. Segundos depois e por artes que não sei de quê, vejo o Tavongo a lançar uma mão para mim, enquanto me afundava, cada vez mais, já com água pelos ombros mas com a espingarda na mão ainda. Graças a ela, sou puxado para a margem. Fico quase sem respirar enquanto ele diz:

- É pátrão, estavas a querer bêbê a água do baragem. Aqui é périgóso.

Aparecem, Matos e Borges, ofegantes, este último com uma corda. Diz Matos:

- O Tavongo é que deu conta, nem sei como. Não ouvimos nada. Porra pá! Era para ires caçar, não era para pescares!

Riam-se todos, até o Tavongo, contagiado. Agradeci-lhe por palavras e abraçando-o. Nada mais podia fazer de momento.

- Vamos ver se secas até lá, senão a tua mulher fica aflita e levas uma descasca.

Desta vez defacto, não tinha palavras para dizer nada. Não ganhei para o susto e não tinha nenhuma circunstância atenuante para a “proeza”, a não ser que devia ter estado atento ao terreno, mas não. Dei prioridade única à vontade de caçar. Sofreguidão. Os sentidos todos “colocados” no ato de caçar. Podia ter sido fatal. E, bom, foi assim que, querendo ir à caça, acabei por ir à “pesca”!




Viriato Mondeguino


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