domingo, 21 de setembro de 2025

 

MÃE ANTÓNIA

 

Dei comigo nas compras, fruta. É um quebra-cabeças esta função. Porquê? O que nos aparece? Fruta verde, por dentro “queimada”, na quase totalidade dos casos, a apodrecer por dentro e lindas por fora… é essa a desgraça, mal embalada, queimada do frio dos frigoríficos. Verdade, verdadinha, se não fossem os benditos “arrefecedores” para estagnar o processo de maturação/decomposição natural da dita fruta, ninguém comia fruta… todo o ano. Mesmo que um pêssego saiba a pepino ou uma laranja tenho um gosto a mofo insuportável, praticamente todo o ano existe fruta e paga-se muito bem por ela, mesmo que a deitemos fora, com um ar desolado e a dizer entre dentes: “Nunca mais trago pêssegos… maçãs, nectarinas, tangerinas… laranjas, fora de época. Ah., ah., ah.

É assim. Temos que optar, fora da nossa época da fruta (come-se na mesma tudo verde) para fruta tropical a preços de ourivesaria. Que fazer? Não comer? Nem isso podemos?  Suportamos os preços?

Olhei umas anonas… não é normal aparecerem nos nossos mercados. Apanhei uma, como sempre faço, cheirei e… sorri. E do que é que me lembrei? Uma história com quase… digamos que terá 58 anos. Passou-se em Angola, no tempo em por lá circulei. Não resisto a contar, ah, publiquei-a num livro, (As (des)Aventuras de um professor em África) um livro de memórias sobre caçadas falhadas e outras histórias, tem Kimberlitos e tudo.

Nos diálogos em que aparece o linguarejar dos naturais, é o que é. Mesmo assim. Não se trata, de forma nenhuma, de eventuais arremedos, seria triste da minha parte se o fosse. Pura e simples, é a forma linguística de quem não tinha obrigação de falar correctamente o português e o fazia para se entender e sobreviver.

E simplesmente, foi assim:

 

Andei um bom bocado e acabei por “dar comigo” no Musseque São Paulo. Estou a ver umas quitandeiras por ali com fruta, mas, será possível? Fruta de Moçâmedes, ou seja, uvas? Deixa-me ver, não pode ser. São da África do Sul com certeza.

Ouço uma conversa, uma moça ainda nova, a falar para uma quitandeira. Finda a conversa e já junto à quinda, pergunto:

- Como a senhora se chama?

- Ouviu a minha filha? Pode ser assim.

- Muito bem. Então mãe Antónia, diga-me quanto quer por estas uvas? Parecem estar maduras.

- São da produção lá do Namibe. Doces, doces, doces com'ó mel!

- Pago-lhe quanto?

- Dois angorar e meio, já lás vendi más cara hóje.

- Está bem, está bem, pese dois quilitos.

A frase: “Ouviu a minha filha?” levou-me instantaneamente para um outro dia em que fiz uma compra aqui, no São Paulo. Já tinham passado algumas semanitas sobre este sábado, foi junto a uma quitandeira com a sua quinda cheia de... meio, meio, anonas e quiabos. Histórias sobre histórias…

Esse dia estava quente e às dez horas da manhã apetecia beber uma cerveja. Para mim uma Nocal preta era a que mais me satisfazia. Manias. Mas o calor chegava, se chegava! As quitandeiras alinhavam-se no passeio, como agora, e nas bancas improvisadas, mais atrás. Isto era perto do cinema São Paulo. Ir comprar  ao Kinaxixe não dava gozo. Aqui tinha mais banga. As vozes eram tantas e ao mesmo tempo, faziam aquele “ruído” típico de um mercado, não de grandes proporções, mas suficiente para se conseguir ver e comprar o que se pretendesse e assim levar coisas de uma forma rápida.

Os risos das mulheres, a correria das crianças por entre as quindas, o consequente ralhar das mães e das que o não eram, não fossem atirar com tudo para o chão espalhando o que custou muito a tratar e a trazer. As mais velhas mandavam na cachopada e eram sempre respeitadas.

Nesse sábado apeteciam-me umas anonas e olhando a “cara” delas, Santo Deus, deviam estar uma delícia. A certa distância, lembro, ouvi uma mulher dizer para a quitandeira o que tinha na quinda. Era o que me interessava, continuou a falar,  agora dizendo:

- Mãe Antónia, vou na Mutamba falar com Jácinto. Só sai à “meia” e preciso de dinhéro para os medicamento.

- Vai, vai, quéu ólho.

Acerquei-me da quinda, peguei numa anona, examinei-a perante o olhar desconfiado da senhora, mulher para os seus 70 anos, ainda vigorosa. Ao ver o meu sorriso adiantou:

- Góstôu? São bóas mésmo!

- Já vi sim mãe Antónia, vou querer.

               A quitandeira olhou-me com ar ainda mais desconfiado e ao mesmo tempo falou com a voz calma, assim mesmo, cautelosa, a tentar ler na minha face a reacção às palavras que começou a proferir:

- Como que sábes o méu nóme? Não me conhéce, eu não le conhéço. Tem vindo áqui néste lugá?

- Não, não tenho, mas já conheço a senhora e o seu nome não me esquece mais.

             Gostava de saber porque razão fui dizer que conhecia a senhora se não era quem eu pensava ser, descobri acto contínuo às suas palavras e a fisionomia assim mais de perto, não ser uma senhora que me passava roupa, fazia pouco tempo. Afinal para confirmação, tinha ouvido o nome dela e efectivamente não era o da que eu pensava ser. Paciência. Bom, “daquelas coisas” que associadas ao parecer ser quem pensava e o acto de ouvir-lhe a voz, mais o ter fixado a sua face, vai só um instante e… argolada minha. Mas já estava, já estava!

- Estóu gostando do “xindere”. Quanto que vais quérér?

- Dois quilos, faz favor.

- Estám bém.

              Pesou numa balança velha que nem o kaprandanda[1]. Entregou-me o saco com os dois quilos. Perguntei quanto era. Disse-me nestes termos:

- Não págas nada. Quem sabe o méu nome diz qué náo vai ésquécê, vai ter meu agrádo.

Fiquei completamente sem saber o que fazer, o que dizer, a meter a mão no bolso para tirar a carteira, ficar com ela na mão, a apertar o saco, meter a carteira no bolso, voltar a meter a mão no bolso, voltar a tirá-la e a apertar o saco, até que consegui falar:

- Mãe Antónia, por favor não me faça isso. Quero pagar.

Os remorsos começaram a perturbar-me e continuei:

- Por favor eu pago, a senhora precisa desse dinheiro.

- Não págas mésmo. As anónas são minha! Éu é quê mánda!

- Bom, então se não pago, deixo...

                Fiz o gesto de quem ia deixar o saco e... Saiu de trás da quinda e veio para ao pé de mim:               

 -  Não fáis isso comigo! Eu quer dar e pronto! Éu é quem sabe! Está me éntendéndo?               

- Certo.

- Então vai aceitar o que lhe vou dar.

 Aqui falei em voz baixa. Remexi na minha carteira, retirei um envelope pequeno que me tinham dado com um postalinho e meti lá dentro, sem que ela se apercebesse, uma nota de 50 angolares ou seja, escudos. Era o que tinha. Nem mais nem menos. Também não percebi porque o fiz. Dei-lhe o envelope com a nota e fui-me afastando lentamente, olhando de soslaio, não fosse a quitandeira deitar o envelope fora. Não. Abriu o envelope e disse em voz alta, já eu ia a cerca de trinta metros:               

-  Brigada “xindere”, nâ carecia, brigada… meu firia já pode págá no frámácia.

               Reparei que as outras quitandeiras olhavam na minha direcção. Todo eu sorria por dentro e a seguir por fora. Abençoadas anonas que me fizeram feliz nesse dia.

Existem dias em que mesmo ficando sem dinheiro conseguimos toda a “riqueza” do mundo, os afectos.

Pensei depois, àquela hora do dia para onde eu levava a fruta?  Iria andar com ela toda a manhã? Bom, nada que saber, vamos embora para o bendito quartel.

 

Pois o que acham os amigos leitores desta memória com tanta ternura? Pois é muito bom ter passado estes momentos. Ah, comprei agora as anonas, mesmo que estejam verdes, guarda-as para ver se amadurecem… se não ficarem, deito-as fora como faço, com a fruta, quase sempre. Isto, “cá”.

 

 

VM

(publicado também no DUAS LINHAS)



[1] Indicativo de um “ser” para lá de velho

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