MÃE ANTÓNIA
Dei comigo nas compras, fruta. É um quebra-cabeças esta função. Porquê?
O que nos aparece? Fruta verde, por dentro “queimada”, na quase totalidade dos
casos, a apodrecer por dentro e lindas por fora… é essa a desgraça, mal
embalada, queimada do frio dos frigoríficos. Verdade, verdadinha, se não fossem
os benditos “arrefecedores” para estagnar o processo de maturação/decomposição
natural da dita fruta, ninguém comia fruta… todo o ano. Mesmo que um pêssego
saiba a pepino ou uma laranja tenho um gosto a mofo insuportável, praticamente
todo o ano existe fruta e paga-se muito bem por ela, mesmo que a deitemos fora,
com um ar desolado e a dizer entre dentes: “Nunca mais trago pêssegos… maçãs,
nectarinas, tangerinas… laranjas, fora de época. Ah., ah., ah.
É assim. Temos que optar, fora da nossa época da fruta (come-se na
mesma tudo verde) para fruta tropical a preços de ourivesaria. Que fazer? Não
comer? Nem isso podemos? Suportamos os
preços?
Olhei umas anonas… não é normal aparecerem nos nossos mercados. Apanhei
uma, como sempre faço, cheirei e… sorri. E do que é que me lembrei? Uma
história com quase… digamos que terá 58 anos. Passou-se em Angola, no tempo em
por lá circulei. Não resisto a contar, ah, publiquei-a num livro, (As (des)Aventuras de um professor em
África) um livro de memórias sobre caçadas falhadas e outras histórias, tem
Kimberlitos e tudo.
Nos diálogos em que aparece o linguarejar dos naturais, é o que é. Mesmo
assim. Não se trata, de forma nenhuma, de eventuais arremedos, seria triste da
minha parte se o fosse. Pura e simples, é a forma linguística de quem não tinha
obrigação de falar correctamente o português e o fazia para se entender e
sobreviver.
E simplesmente, foi assim:
Andei um bom bocado e acabei
por “dar comigo” no Musseque São Paulo. Estou a ver umas quitandeiras por ali
com fruta, mas, será possível? Fruta de Moçâmedes, ou seja, uvas? Deixa-me ver,
não pode ser. São da África do Sul com certeza.
Ouço uma conversa, uma moça ainda
nova, a falar para uma quitandeira. Finda a conversa e já junto à quinda,
pergunto:
-
Como a senhora se chama?
- Ouviu a minha filha? Pode ser
assim.
- Muito bem. Então mãe Antónia,
diga-me quanto quer por estas uvas? Parecem estar maduras.
- São da produção lá do Namibe.
Doces, doces, doces com'ó mel!
-
Pago-lhe quanto?
- Dois angorar e meio, já lás
vendi más cara hóje.
- Está bem, está bem, pese dois
quilitos.
A frase: “Ouviu a minha filha?”
levou-me instantaneamente para um outro dia em que fiz uma compra aqui, no São
Paulo. Já tinham passado algumas semanitas sobre este sábado, foi junto a uma
quitandeira com a sua quinda cheia de... meio, meio, anonas e quiabos. Histórias
sobre histórias…
Esse dia estava quente e às dez
horas da manhã apetecia beber uma cerveja. Para mim uma Nocal preta era a que
mais me satisfazia. Manias. Mas o calor chegava, se chegava! As quitandeiras
alinhavam-se no passeio, como agora, e nas bancas improvisadas, mais atrás.
Isto era perto do cinema São Paulo. Ir comprar ao Kinaxixe não dava gozo. Aqui tinha mais
banga. As vozes eram tantas e ao mesmo tempo, faziam aquele “ruído” típico de
um mercado, não de grandes proporções, mas suficiente para se conseguir ver e
comprar o que se pretendesse e assim levar coisas de uma forma rápida.
Os risos das mulheres, a
correria das crianças por entre as quindas, o consequente ralhar das mães e das
que o não eram, não fossem atirar com tudo para o chão espalhando o que custou
muito a tratar e a trazer. As mais velhas mandavam na cachopada e eram sempre
respeitadas.
Nesse sábado apeteciam-me umas
anonas e olhando a “cara” delas, Santo Deus, deviam estar uma delícia. A certa
distância, lembro, ouvi uma mulher dizer para a quitandeira o que tinha na
quinda. Era o que me interessava, continuou a falar, agora dizendo:
- Mãe Antónia, vou na Mutamba
falar com Jácinto. Só sai à “meia” e preciso de dinhéro para os medicamento.
-
Vai, vai, quéu ólho.
Acerquei-me da quinda, peguei
numa anona, examinei-a perante o olhar desconfiado da senhora, mulher para os
seus 70 anos, ainda vigorosa. Ao ver o meu sorriso adiantou:
-
Góstôu? São bóas mésmo!
- Já
vi sim mãe Antónia, vou querer.
A quitandeira olhou-me com ar
ainda mais desconfiado e ao mesmo tempo falou com a voz calma, assim mesmo,
cautelosa, a tentar ler na minha face a reacção às palavras que começou a
proferir:
- Como
que sábes o méu nóme? Não me conhéce, eu não le conhéço. Tem vindo áqui néste
lugá?
-
Não, não tenho, mas já conheço a senhora e o seu nome não me esquece mais.
Gostava de saber porque razão fui
dizer que conhecia a senhora se não era quem eu pensava ser, descobri acto
contínuo às suas palavras e a fisionomia assim mais de perto, não ser uma
senhora que me passava roupa, fazia pouco tempo. Afinal para confirmação, tinha
ouvido o nome dela e efectivamente não era o da que eu pensava ser. Paciência.
Bom, “daquelas coisas” que associadas ao parecer ser quem pensava e o acto de
ouvir-lhe a voz, mais o ter fixado a sua face, vai só um instante e… argolada
minha. Mas já estava, já estava!
-
Estóu gostando do “xindere”. Quanto que vais quérér?
-
Dois quilos, faz favor.
-
Estám bém.
Pesou numa balança velha que nem
o kaprandanda[1].
Entregou-me o saco com os dois quilos. Perguntei quanto era. Disse-me nestes
termos:
-
Não págas nada. Quem sabe o méu nome diz qué náo vai ésquécê, vai ter meu
agrádo.
Fiquei completamente sem saber
o que fazer, o que dizer, a meter a mão no bolso para tirar a carteira, ficar
com ela na mão, a apertar o saco, meter a carteira no bolso, voltar a meter a
mão no bolso, voltar a tirá-la e a apertar o saco, até que consegui falar:
-
Mãe Antónia, por favor não me faça isso. Quero pagar.
Os remorsos começaram a
perturbar-me e continuei:
-
Por favor eu pago, a senhora precisa desse dinheiro.
-
Não págas mésmo. As anónas são minha! Éu é quê mánda!
-
Bom, então se não pago, deixo...
Fiz o gesto de quem ia deixar o
saco e... Saiu de trás da quinda e veio para ao pé de mim:
- Não
fáis isso comigo! Eu quer dar e pronto! Éu é quem sabe! Está me
éntendéndo?
-
Certo.
-
Então vai aceitar o que lhe vou dar.
Aqui falei em voz baixa. Remexi na minha
carteira, retirei um envelope pequeno que me tinham dado com um postalinho e
meti lá dentro, sem que ela se apercebesse, uma nota de 50 angolares ou seja,
escudos. Era o que tinha. Nem mais nem menos. Também não percebi porque o fiz.
Dei-lhe o envelope com a nota e fui-me afastando lentamente, olhando de
soslaio, não fosse a quitandeira deitar o envelope fora. Não. Abriu o envelope
e disse em voz alta, já eu ia a cerca de trinta metros:
- Brigada “xindere”, nâ carecia, brigada… meu
firia já pode págá no frámácia.
Reparei que as outras
quitandeiras olhavam na minha direcção. Todo eu sorria por dentro e a seguir
por fora. Abençoadas anonas que me fizeram feliz nesse dia.
Existem dias em que mesmo
ficando sem dinheiro conseguimos toda a “riqueza” do mundo, os afectos.
Pensei depois, àquela hora do
dia para onde eu levava a fruta? Iria
andar com ela toda a manhã? Bom, nada que saber, vamos embora para o bendito
quartel.
Pois o que acham os amigos leitores desta memória com tanta
ternura? Pois é muito bom ter passado estes momentos. Ah, comprei agora as
anonas, mesmo que estejam verdes, guarda-as para ver se amadurecem… se não
ficarem, deito-as fora como faço, com a fruta, quase sempre. Isto, “cá”.
VM
(publicado também no DUAS LINHAS)
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